11.5.07

A Mulher que prendeu a chuva #2

Um homem de negócios viaja até Lisboa. Fá-lo com frequência, pelo menos uma vez por mês. Compreende a língua o suficiente para não precisar de intérprete, porque viveu parte da infância e juventude no Brasil. Na suite do hotel onde fica alojado surpreende uma conversa entre duas mulheres africanas que fazem limpeza. são elas que contam a "história" da mulher que prendeu a chuva. Teolinda Gersão criou uma micronarrativa dentro da narrativa principal.

Num mesmo espaço acontece assim um encontro - entre duas concepções do mundo. A representação do mundo que emerge da conversa entre as imigrantes africanas, da história que uma conta a outra, plena de pensamento mágico, opõe-se, em princípio, à racionalidade do estrangeiro em negócios. Mas ele vai ficar afectado pela representação mágica. e estranha o encontro: "de repente, quando entreabri uma das portas, na sala ao lado estava um pedaço de África, intacto, como um pedaço de floresta virgem. Durante sete minutos, exactamente sete minutos, fiquei perdido na floresta." (pp 83)

Este conto, que dá nome ao último livro de Teolinda Gersão, remete-nos para a sociedade globalizada em que vivemos, a uma escala, hoje, nunca antes vivida. A globalização tem aspectos predominantemente tecnológicos, económicos e de migrações. A evocação das imigrantes africanas e do seu saber são uma proposta de recusa de uma representação do mundo em que só exista um sentido. Aquilo que Teolinda Gersão faz é integrar o discurso de uma (dita) minoria no nosso universo e torná-lo cosmopolita; deslocá-lo da periferia (a longínqua África) para o centro.

Se extrapolarmos, o discurso das duas africanas pode também ser percebido como uma denúncia. Os "centros" tendem a encarar as práticas culturais, a criação artística e intelectual das "periferias" como meramente exóticas, relegando-as com frequência para um plano secundário, afastando-as dos circuitos internacionais da arte e da cultura.

A evolução desta globalização não é de todo linear e, sobretudo, é tensional. O homem de negócios comenta: "Não há nada de errado comigo. Lisboa é que não era, provavelmente, um lugar normal." (p.  84)

Mas hoje em dia, graças às migrações, já não é possível surpreendermo-nos quando múltiplos discursos e representações coincidem num mesmo espaço (espaço-hotel, espaço-cidade, espaço-país, espaço-Europa). Na verdade, sem nos darmos conta, somos já produtos híbridos - como de resto o personagem, que passara os primeiros anos de vida no Brasil.


--- a propósito do conto A Mulher que Prendeu a Chuva, de Teolinda Gersão
Sudoeste Editora, Março 2007

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