A biografia de Sándor Márai é ela própria espantosa e trágica. Nasceu em Kassa, na Hungria, em 1900, e nos anos 30 era já um escritor famoso. Assumiu posições anti-fascistas e anti-comunistas. Foi perseguido. Sobreviveu à II Guerra Mundial mas em 1948 foi obrigado a exilar-se. Partiu para Itália, e daí para os EUA. Lentamente o seu nome começou a ser esquecido. Em 1923, Márai casou com Lola Matzner, judia. O casal teve um filho, Kristof, que morreu poucas semanas depois do seu nascimento em 1939. Não voltaram a ter mais filhos mas adoptaram outra criança, János. A sua obra, composta por dezenas de romances, além das suas memórias, permaneceu na obscuridade porque a tradução do húngaro não é frequente, e porque ele nunca permitiu que os seus livros fossem editados na Hungria durante o período de dominação soviética. Lola morreu em 1986, o que arrasou Márai. Janós, morreu com 46 anos, no ano seguinte. Desesperado, só, e completamente esquecido, Márai suicidou-se com um tiro na cabeça a 22 de Fevereiro de 1989. Nove anos depois, o seu trabalho é descoberto pelo escritor italiano Roberto Calasso. As notícias espalham-se depressa e muito rapidamente os seus livros começam a vender-se bastante em Itália e na Alemanha. Outros países se seguem. A obra de Márai renasce e volta a ser conhecida no mundo inteiro.
A Herança de Eszter (Public.Dom Quixote), que acabo de ler, é um romance muito particular, contado na primeira pessoa. A acção decorre em dois planos temporais: o primeiro num dia e o segundo, 20 anos depois. Antes de morrer, Eszter quer contar-nos a história do dia em que Lajos veio vê-la pela última vez e a roubou. A pureza e a comoção que caracterizam os sentimentos de Eszter, e a falta de armas de toda a sua família, face a Lajos, um sedutor sem escrúpulos, deixam o leitor (deixaram-me) irritado. Até que a desconcertante decisão final de Eszter se revela. e compreendemos o que é existir inteiro, sendo coerente com o nosso mais íntimo ser. "Lajos tem razão, Endre, Lajos tem razão ao dizer que na vida há uma qualquer ordem invisível e que devemos terminar o que um dia se começou... Como pudermos...Pois agora terminei - disse eu, e levantei-me." (pp. 145-146)
Do mesmo autor, terei que ler Como As Velas Ardem até ao Fim, outro dos seus romances já traduzidos, e que me dizem ser ainda mais belo.
A Herança de Eszter (Public.Dom Quixote), que acabo de ler, é um romance muito particular, contado na primeira pessoa. A acção decorre em dois planos temporais: o primeiro num dia e o segundo, 20 anos depois. Antes de morrer, Eszter quer contar-nos a história do dia em que Lajos veio vê-la pela última vez e a roubou. A pureza e a comoção que caracterizam os sentimentos de Eszter, e a falta de armas de toda a sua família, face a Lajos, um sedutor sem escrúpulos, deixam o leitor (deixaram-me) irritado. Até que a desconcertante decisão final de Eszter se revela. e compreendemos o que é existir inteiro, sendo coerente com o nosso mais íntimo ser. "Lajos tem razão, Endre, Lajos tem razão ao dizer que na vida há uma qualquer ordem invisível e que devemos terminar o que um dia se começou... Como pudermos...Pois agora terminei - disse eu, e levantei-me." (pp. 145-146)
Do mesmo autor, terei que ler Como As Velas Ardem até ao Fim, outro dos seus romances já traduzidos, e que me dizem ser ainda mais belo.
Logo na sua estreia como romancista, ou seja, na publicação do seu primeiro romance, Silêncio (Public. Dom Quixote, 1981), Teolinda Gersão arrecadou o prémio do Pen Club português, no género ficção.
De uma forma distinta, tal como em A herança de Eszter, mergulhamos nos limites da incomunicabilidade, do autismo, no (des)encontro entre uma condição feminina e uma condição masculina, como se o tempo, o de Sándor e o de Teolinda, fosse o mesmo.
No romance A Árvore das Palavras (Dom Quixote, 1997), essa dicotomia volta a estar presente.
Foi interessante ler duas obras da mesma autora, escritas em períodos diferentes, com estruturas narrativas díspares (em Silêncio, a linearidade narrativa é interrompida, há decomposição, descontinuidade, circularidade, como se uma escrita na água; em A Árvore, um estrutura mais linear, uma trama coesa, a história de uma família num local e tempo definidos - a então Lourenço Marques, no início da Guerra Colonial), e observar a recorrência de temas: a imaginação, o sonho como evasão ou força transformadora do real, sempre associado à mulher, o desejo (in)contido de liberdade, as idas e voltas das relações interpessoais, em particular homem-mulher, e sempre, a busca, da identidade. Curioso também o papel da casa, como palco e como marca de uma condição de género ou de espírito, feminino/masculino, passivo/inquieto. A casa que oprime/protege, se ordena/desfaz. As janelas que se abrem ao mundo ou se fecham ao devir, encerrando o silêncio.
Leiam um estudo elaborado nos anos 80 por Eduardo Prado Coelho sobre Silêncio. Ou, para melhor compreender o universo da escritora, um artigo de Isabel Pires de Lima, a actual Ministra da Cultura que, caso não saibam, é doutorada em Literatura Portuguesa.
De uma forma distinta, tal como em A herança de Eszter, mergulhamos nos limites da incomunicabilidade, do autismo, no (des)encontro entre uma condição feminina e uma condição masculina, como se o tempo, o de Sándor e o de Teolinda, fosse o mesmo.
No romance A Árvore das Palavras (Dom Quixote, 1997), essa dicotomia volta a estar presente.
Foi interessante ler duas obras da mesma autora, escritas em períodos diferentes, com estruturas narrativas díspares (em Silêncio, a linearidade narrativa é interrompida, há decomposição, descontinuidade, circularidade, como se uma escrita na água; em A Árvore, um estrutura mais linear, uma trama coesa, a história de uma família num local e tempo definidos - a então Lourenço Marques, no início da Guerra Colonial), e observar a recorrência de temas: a imaginação, o sonho como evasão ou força transformadora do real, sempre associado à mulher, o desejo (in)contido de liberdade, as idas e voltas das relações interpessoais, em particular homem-mulher, e sempre, a busca, da identidade. Curioso também o papel da casa, como palco e como marca de uma condição de género ou de espírito, feminino/masculino, passivo/inquieto. A casa que oprime/protege, se ordena/desfaz. As janelas que se abrem ao mundo ou se fecham ao devir, encerrando o silêncio.
Leiam um estudo elaborado nos anos 80 por Eduardo Prado Coelho sobre Silêncio. Ou, para melhor compreender o universo da escritora, um artigo de Isabel Pires de Lima, a actual Ministra da Cultura que, caso não saibam, é doutorada em Literatura Portuguesa.
Diferente de tudo o que já lemos deste autor é Underground - O Atentado de Tóquio e a Mentalidade Japonesa (Tinta da China Edições, 2006). Este livro de Haruki Murakami foi escrito entre 1997/98, e é composto por duas séries de entrevistas que realizou: a sobreviventes do atentado no metro de Tóquio com gás sarin, ocorrido na manhã de 20 de Março de 1995, e a vários membros da seita Aum ou Verdade Suprema (autora do atentado). No Japão, a segunda série foi publicada numa edição separada com o título O Lugar Prometido.
"No início de cada entrevista, eu pedia aos entrevistados que me falassem da sua história - onde tinham nascido, como era a sua família e o seu trabalho (sobretudo o seu trabalho) -, para poder dar a cada um deles um rosto, para os tornar visíveis. Não queria uma colecção de vozes sem corpo." pp 17-18
"Não decidi fazer estas entrevistas a actuais e antigos membros da seita para os criticar ou para os denunciar, nem sequer na esperança de que as pessoas os olhassem a uma luz mais positiva. O que estou a tentar transmitir com este livro é exactamente o mesmo que esperava transmitir em Underground - não um ponto de vista claro, mas sim material, de carne e osso, a partir do qual se possam construir pontos de vista múltiplos; e esse é o mesmo objectivo que tenho em mente quando escrevo romances." pp 331
Para descrever a sensação que tive ao ler alguns destes testemunhos, deixo-vos uma citação de Silêncio de Teolinda Gersão (os últimos dois parágrafos deste livro):
"Voltou para dentro e fechou a janela.
Havia dentro dele um ódio leve, que se estendia a todas as coisas do mundo"
"No início de cada entrevista, eu pedia aos entrevistados que me falassem da sua história - onde tinham nascido, como era a sua família e o seu trabalho (sobretudo o seu trabalho) -, para poder dar a cada um deles um rosto, para os tornar visíveis. Não queria uma colecção de vozes sem corpo." pp 17-18
"Não decidi fazer estas entrevistas a actuais e antigos membros da seita para os criticar ou para os denunciar, nem sequer na esperança de que as pessoas os olhassem a uma luz mais positiva. O que estou a tentar transmitir com este livro é exactamente o mesmo que esperava transmitir em Underground - não um ponto de vista claro, mas sim material, de carne e osso, a partir do qual se possam construir pontos de vista múltiplos; e esse é o mesmo objectivo que tenho em mente quando escrevo romances." pp 331
Para descrever a sensação que tive ao ler alguns destes testemunhos, deixo-vos uma citação de Silêncio de Teolinda Gersão (os últimos dois parágrafos deste livro):
"Voltou para dentro e fechou a janela.
Havia dentro dele um ódio leve, que se estendia a todas as coisas do mundo"
Sem comentários:
Enviar um comentário