17.10.05

Uma homenagem do Escritor Famoso Lino Centelha a todos os participantes do último Concurso

Pó de ser

O meu signo da semana passada começava assim: "Possibilidade de encetar novos caminhos; alguns assuntos e problemas serão erradicados da sua vida dando campo a novas perspectivas".

As previsões eram tão animadoras que me fizeram lançar na semana com o maior dos optimismos. Na expectativa de um tempo alegremente incerto, e apesar da poeira que tinha assentado durante a noite, levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância, à procura de inspiração para os novos projectos que a promissora semana esperava de mim. Durante a caminhada começou a chover. Mesmo tendo um pó desgraçado à chuva, aguentei os instintos e percebi que era um sinal dos céus. Deixei a casa dos espirros e voltei à pressa para Lisboa pensando que se a chuva me livrasse do pó eu ainda tinha uma possibilidade de ser o escritor famoso.

Passei por Fátima onde deixei uma vela das caras e comprei uma mão de cera onde consegui encaixar, com alguma dificuldade, diga-se, a minha MontBlank com que assino as teses e os cheques. Aproveitei para comprar também um terço para pendurar no espelho retrovisor, junto ao DVD virgem que uso para iludir os radares da polícia, porque desde que deixei de ter seguro contra todos os riscos tenho andado mais preocupado com os loucos que andam por aí ao volante.

Cheguei a Lisboa ainda a tempo de votar mas tive alguns problemas. O presidente da assembleia recusou a minha permanência naquele local com a minha mãozinha de cera, pois podia ser entendida como um símbolo partidário e estar eu, por isso, sujeito a uma coima. Pus a mão no carro e tive que votar com uma Bic já em adiantado estado de decomposição. Uma lástima. Com uma esferográfica reles daquelas eu não poderia votar dignamente no meu partido e por isso votei noutro.

Ao chegar a casa a noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a televisão. Os computadores do estado tinham avariado e os jornalistas deram os resultados de há quatro anos para posteriormente se poderem retratar pelo lapso. Mas não foi preciso.

Aborrecido por estar a ver um programa repetido fui escrever uma carta à Insónia. As coisas andavam mal há muito tempo mas o meu signo dizia: "É altura de colocar um ponto final em relações afectivas que não lhe trazem estabilidade, apenas com o coração livre poderá almejar por melhores dias". Imitei o tom da carta à Sandra que tinha usado com sucesso há uns anos para me despedir da dita. Custou-me um bocadinho porque ao fim de seis meses de namoro posso dizer que já estava numa espécie de prólogo ao coito. É o que se chama desperdiçar um investimento. Mas o meu signo era muito claro.

Na manhã seguinte cheguei cedo ao trabalho. "Alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui" era a password da semana para entrar no refeitório e conseguir ter acesso à máquina de café. Até a menina Graciete sentiu o meu ar triunfal pois durante a manhã mais não fiz que ostentar a minha pose de bafejado pela fortuna dos céus e da conjugação dos planetas. No segundo café da manhã queimei-me. O dedo não arde, apenas dói. A Graciete tira outro café e pergunta-me o que me traz tão bem disposto. Falo-lhe do meu signo que diz: "não tenha medo do futuro." Ela fica de facto interessada. A vida é bela. As coisas estão mesmo a mudar.

À tarde falei com o Profírio, um colega meu que é primo do famoso escritor Jorge Rebelo Tinto, e perguntei-lhe qual era a distância de Lisboa a Aveiro. Disse-me que era a mesma que de Aveiro a Lisboa. Também me informou que de Lisboa a Aveiro demorava quase o mesmo que de Aveiro a Lisboa. Fiquei contente porque isto já eram dados importantes para por em acção o meu plano.

Na terça-feira a Graciete trazia um perfume novo. Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera do balcão onde alinhava as chávenas acabadas de lavar. Talvez por isso quando o patrão me chamou e me perguntou porque não estavam ainda acabados os documentos da qualidade que me tinha pedido eu lhe tenha respondido enigmaticamente: Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Deu um urro muito estranho, mesmo para uma pessoa como ele, e eu tive que ir tomar outro café para desanuviar. Para meter conversa disse à Graciete et in Arcadia ego e ela ficou a olhar para mim com um ar semelhante ao do patrão o que me deixou preocupado com as consequências inesperadas da inclusão da literariedade nos assuntos do dia a dia.

É aborrecido dizê-lo mas no dia seguinte não consegui evitar pensar enquanto acordava com uma renovada dificuldade: mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Pensei como é que podia evitar ir para o trabalho. Tinha cerca de setecentos papéis, quase todos iguais, para olhar com a máxima atenção antes de seguirem para os arquivos que guardavam a esplendorosa qualidade do nosso fabrico. Resolvi arriscar. Pus-me a debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. O resultado final seria o mesmo. Só por muito azar alguém alguma vez haveria de olhar para aqueles papéis. Uma improvável auditoria. E havia mesmo assim a hipótese de o auditor estar com o mesmo tédio que eu e olhar com interesse para os papéis sem de facto ver nada, acenando gravemente a cabeça em sinal de assentimento. A qualidade. A qualidade. Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita esta cedência da minha escrita à desonestidade.

Há momentos em que paramos. Subitamente. Desta vez foi por falta de gasolina. Cheio de pressa passei a área de serviço de Leiria com o ponteiro encostado mas pensando que ainda dava para mais quarenta quilómetros. Qual nada. Poucos quilómetros depois parei.

O dia tinha começado mal. Uma carta no correio dizia: reaviso. Prezado usuário, até a presente data não consta dos nossos registros o pagamento da sua conta/fatura do mês anterior. É mau de mais. Perseguição, pensei eu. Resolverei isso mais tarde. Tal como os problema com o patrão, com a Graciete, com o Profírio e com o auditor... Há sempre um tempo próprio para cada coisa.

Tinha pensado entrar no Navio dos Espelhos como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início. Mas o mundo inteiro estava contra mim. O Bush ao invadir o Iraque tinha feito disparar o preço do crude e com isso o preço de gasolina e com isso a minha ideia de poupar e com isso o depósito do meu carro sempre a ser atestado no limite.

Quando cheguei, às tantas da manhã, ouviam-se Les Voix du Silence. Percorri cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhei os livros caiados de pó de casa. Pensava: Seila quem é que votou em mim! Quem teria Paixão pelo meu texto? É terrível estarmos na ignorância do nosso destino.

Voltei para a casa do pó. O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.

Automedico-me com o signo para esta semana: "A conjuntura é muito favorável para os nativos deste signo a quem serão dadas novas oportunidades indutoras de êxito, é necessário que se empenhe e demonstre acima de tudo, força de vontade e convicção. Pode ser alvo de manifestações sentimentais surpreendentes e inesperadas, retribua todos os afectos sem reservas..."

O pó enche de novo as superfícies horizontais. O bico da caneta é uma bola de caliça azulada. Voltarei ao Navio dos Espelhos à procura de um livro que traga novos signos e que possa, ainda que por instantes, dar a impressão que há coisas que valem a pena. Como é estranho que haja entendimento mesmo que as letras sejam deixadas cair ao acaso e não seja certo que haja um lugar perfeitamente esférico onde regressar.


Lino Centelha

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