12.10.05

Poesia, por Marquesa D'Aires

Tenho meia dúzia de livros de poesia. Gosto do som das palavras em inglês, parecem-me simples e primordiais. Tenho uns quantos livros do Eugénio de Andrade, o Alberto Caeiro, o Dylan Thomas e pouco mais. A vida é prosa. Soube isso no momento em que, na escola, me mandaram fazer uns versos em rima. Transpirei das mãos, escrevi e apaguei até fazer um buraco no caderno, mas nada me saiu, senão um par de frases mal conchavadas. E quando o professor me chamou à frente do quadro, gaguejei a minha incapacidade de contar histórias em poema. Fui de criança a adolescente, de adolescente a mulher, com esta vergonha na memória. Eis-me chegada aqui, ao instante em que as nossas existências se cruzaram, com a mesma consciência de sempre: a poesia tem segredos que eu não entendo. Não me vejo a dizer coisas que não sei o que são, não sei falar do amor com os requintes das coisas escritas em verso, com subtilezas das partes reservadas, dos lados claros de luz. Sou prosa, escrita da esquerda para a direita, em linha contínua.
Aquela manhã, de mãos transpiradas e papel rasgado, de rosto corado e olhar complacente do meu professor primário, foi clara. O mundo de sentimentos que fervilhava em mim jamais viria ao mundo como poesia. Existia um outro caminho, algures, à minha frente, no meu futuro. Engoli em seco a derrota. Voltei a engolir outras, conforme fui testando atalhos, caminhos largos e veredas. Quis ser actriz e, em sonhos, vi plateias rendidas, mas quando me apresentei num concurso da Comuna, nem passei da primeira fase. Nem chegou a ser humilhante. Assim que entrei para as audições, não restaram dúvidas de que não fazia parte daquela tribo. Aquele excesso de emoções enojou-me, acentuou-me a timidez. E, uma vez mais, gaguejei a declamar um poema, do qual esqueci o título e as palavras.
A voz só não me atrapalhou quando, no último ano do liceu, o professor de português me escolheu para dizer um poema de Alberto Caeiro. 17 anos inseguros, declamei as palavras que falavam da morte e do regresso da Primavera. Disse, sem perceber o profundo sentido do que dizia, que a Primavera viria com a mesma força, estivesse eu viva ou morta. As flores e as árvores não seriam menos verdes que na Primavera passada. Não tropecei em nenhuma letra, em nenhuma mudança de linha. Não sabia ainda que este era um daqueles momentos em que o destino nos mostra o futuro, nos diz o que precisamos saber. Cinco anos depois, no corredor da morte do hospital, a Primavera estava em força e eu não sabia se estaria viva para assistir ao seu regresso. E foi isso que me levou a abrir o caderno, a colocar a caneta sobre o papel para deixar fluir o turbilhão de emoções. Em prosa, antes que a chama se apagasse.