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17.10.05

Uma homenagem do Escritor Famoso Lino Centelha a todos os participantes do último Concurso

Pó de ser

O meu signo da semana passada começava assim: "Possibilidade de encetar novos caminhos; alguns assuntos e problemas serão erradicados da sua vida dando campo a novas perspectivas".

As previsões eram tão animadoras que me fizeram lançar na semana com o maior dos optimismos. Na expectativa de um tempo alegremente incerto, e apesar da poeira que tinha assentado durante a noite, levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância, à procura de inspiração para os novos projectos que a promissora semana esperava de mim. Durante a caminhada começou a chover. Mesmo tendo um pó desgraçado à chuva, aguentei os instintos e percebi que era um sinal dos céus. Deixei a casa dos espirros e voltei à pressa para Lisboa pensando que se a chuva me livrasse do pó eu ainda tinha uma possibilidade de ser o escritor famoso.

Passei por Fátima onde deixei uma vela das caras e comprei uma mão de cera onde consegui encaixar, com alguma dificuldade, diga-se, a minha MontBlank com que assino as teses e os cheques. Aproveitei para comprar também um terço para pendurar no espelho retrovisor, junto ao DVD virgem que uso para iludir os radares da polícia, porque desde que deixei de ter seguro contra todos os riscos tenho andado mais preocupado com os loucos que andam por aí ao volante.

Cheguei a Lisboa ainda a tempo de votar mas tive alguns problemas. O presidente da assembleia recusou a minha permanência naquele local com a minha mãozinha de cera, pois podia ser entendida como um símbolo partidário e estar eu, por isso, sujeito a uma coima. Pus a mão no carro e tive que votar com uma Bic já em adiantado estado de decomposição. Uma lástima. Com uma esferográfica reles daquelas eu não poderia votar dignamente no meu partido e por isso votei noutro.

Ao chegar a casa a noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a televisão. Os computadores do estado tinham avariado e os jornalistas deram os resultados de há quatro anos para posteriormente se poderem retratar pelo lapso. Mas não foi preciso.

Aborrecido por estar a ver um programa repetido fui escrever uma carta à Insónia. As coisas andavam mal há muito tempo mas o meu signo dizia: "É altura de colocar um ponto final em relações afectivas que não lhe trazem estabilidade, apenas com o coração livre poderá almejar por melhores dias". Imitei o tom da carta à Sandra que tinha usado com sucesso há uns anos para me despedir da dita. Custou-me um bocadinho porque ao fim de seis meses de namoro posso dizer que já estava numa espécie de prólogo ao coito. É o que se chama desperdiçar um investimento. Mas o meu signo era muito claro.

Na manhã seguinte cheguei cedo ao trabalho. "Alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui" era a password da semana para entrar no refeitório e conseguir ter acesso à máquina de café. Até a menina Graciete sentiu o meu ar triunfal pois durante a manhã mais não fiz que ostentar a minha pose de bafejado pela fortuna dos céus e da conjugação dos planetas. No segundo café da manhã queimei-me. O dedo não arde, apenas dói. A Graciete tira outro café e pergunta-me o que me traz tão bem disposto. Falo-lhe do meu signo que diz: "não tenha medo do futuro." Ela fica de facto interessada. A vida é bela. As coisas estão mesmo a mudar.

À tarde falei com o Profírio, um colega meu que é primo do famoso escritor Jorge Rebelo Tinto, e perguntei-lhe qual era a distância de Lisboa a Aveiro. Disse-me que era a mesma que de Aveiro a Lisboa. Também me informou que de Lisboa a Aveiro demorava quase o mesmo que de Aveiro a Lisboa. Fiquei contente porque isto já eram dados importantes para por em acção o meu plano.

Na terça-feira a Graciete trazia um perfume novo. Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera do balcão onde alinhava as chávenas acabadas de lavar. Talvez por isso quando o patrão me chamou e me perguntou porque não estavam ainda acabados os documentos da qualidade que me tinha pedido eu lhe tenha respondido enigmaticamente: Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Deu um urro muito estranho, mesmo para uma pessoa como ele, e eu tive que ir tomar outro café para desanuviar. Para meter conversa disse à Graciete et in Arcadia ego e ela ficou a olhar para mim com um ar semelhante ao do patrão o que me deixou preocupado com as consequências inesperadas da inclusão da literariedade nos assuntos do dia a dia.

É aborrecido dizê-lo mas no dia seguinte não consegui evitar pensar enquanto acordava com uma renovada dificuldade: mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Pensei como é que podia evitar ir para o trabalho. Tinha cerca de setecentos papéis, quase todos iguais, para olhar com a máxima atenção antes de seguirem para os arquivos que guardavam a esplendorosa qualidade do nosso fabrico. Resolvi arriscar. Pus-me a debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. O resultado final seria o mesmo. Só por muito azar alguém alguma vez haveria de olhar para aqueles papéis. Uma improvável auditoria. E havia mesmo assim a hipótese de o auditor estar com o mesmo tédio que eu e olhar com interesse para os papéis sem de facto ver nada, acenando gravemente a cabeça em sinal de assentimento. A qualidade. A qualidade. Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita esta cedência da minha escrita à desonestidade.

Há momentos em que paramos. Subitamente. Desta vez foi por falta de gasolina. Cheio de pressa passei a área de serviço de Leiria com o ponteiro encostado mas pensando que ainda dava para mais quarenta quilómetros. Qual nada. Poucos quilómetros depois parei.

O dia tinha começado mal. Uma carta no correio dizia: reaviso. Prezado usuário, até a presente data não consta dos nossos registros o pagamento da sua conta/fatura do mês anterior. É mau de mais. Perseguição, pensei eu. Resolverei isso mais tarde. Tal como os problema com o patrão, com a Graciete, com o Profírio e com o auditor... Há sempre um tempo próprio para cada coisa.

Tinha pensado entrar no Navio dos Espelhos como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início. Mas o mundo inteiro estava contra mim. O Bush ao invadir o Iraque tinha feito disparar o preço do crude e com isso o preço de gasolina e com isso a minha ideia de poupar e com isso o depósito do meu carro sempre a ser atestado no limite.

Quando cheguei, às tantas da manhã, ouviam-se Les Voix du Silence. Percorri cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhei os livros caiados de pó de casa. Pensava: Seila quem é que votou em mim! Quem teria Paixão pelo meu texto? É terrível estarmos na ignorância do nosso destino.

Voltei para a casa do pó. O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.

Automedico-me com o signo para esta semana: "A conjuntura é muito favorável para os nativos deste signo a quem serão dadas novas oportunidades indutoras de êxito, é necessário que se empenhe e demonstre acima de tudo, força de vontade e convicção. Pode ser alvo de manifestações sentimentais surpreendentes e inesperadas, retribua todos os afectos sem reservas..."

O pó enche de novo as superfícies horizontais. O bico da caneta é uma bola de caliça azulada. Voltarei ao Navio dos Espelhos à procura de um livro que traga novos signos e que possa, ainda que por instantes, dar a impressão que há coisas que valem a pena. Como é estranho que haja entendimento mesmo que as letras sejam deixadas cair ao acaso e não seja certo que haja um lugar perfeitamente esférico onde regressar.


Lino Centelha

O Concurso acabou mas novos textos, inspirados no Escritor Famoso, continuam a chegar. Viva o Escritor! ;)

Ainda o meu amigo, o Escritor Famoso...

Minha Muito Querida Rosário,

Nesta casa e nestas redondezas, há palavras coladas às paredes, ao chão, às pedras, às árvores, a tudo o que conheço como às minhas mãos. E colam-se também às memórias. Há quem se sinta acompanhado por anjos ou por espíritos. A mim, acompanham-me as palavras, sejam elas em que língua forem, maravilhosos entes invisíveis de ressonâncias difusas, ondeantes, que quase penso entrever pelo canto do olho ou no ondear das cortinas.

Talvez seja herança de minha mãe, que, ainda privilegiado na tepidez do seu ventre, me sussurrava poemas e histórias, as palavras fluindo na cadência directa das batidas do seu coração.

Calcorreio estas divisões vezes sem fim, e mesmo assim vou sempre descobrindo detalhes que a minha memória não lembra. Vê lá se isto se compreende! Dou comigo surpreendido pelo facto de o globo terrestre não reflectir o tom dos meus olhos depois das horas perdidas na infância a memorizar ao detalhe o contorno dos continentes! A idade talvez...Ou as palavras tomaram definitivamente conta de mim e estou a adquirir a natureza difusa delas.

“Nous avions cru que nous interrogions la peinture, c'est elle qui nous interroge. ", ouço Malraux dizer em surdina quando me sento na biblioteca. Sim, as palavras que consentiram em deixar-se domar pela minha pena sempre me devolveram os pontos de interrogação que coloquei à vida. Apraz-me o que penso ter aprendido, mesmo que pouco, mas o que me maravilha realmente é a sensação de mistério: mistério da vida, mistério dos sentimentos, mistério dos mundos desconhecidos de cada um. E pensar que quis tantas vezes ver a vida a preto e branco, simples, clara, taxativa. Nunca me agradaria tal vida....

Talvez seja para negar o destino que tanto escrevo. Talvez com tanto discurso apenas o venha confirmar. Isso já não me preocupa. Revisitado o passado por aquilo que hoje sou, tenho a sensação nítida de que o tempo é só este momento em que te escrevo, que todos os momentos passados e futuros estão condensados neste agora, como se juntasse em mim todos os momentos que sonhei ou vivi, todas as emoções que senti pelas pessoas que cruzaram o meu caminho, todos os mundos desconhecidos que entrevi nos olhares ou sorrisos de alguém. Enfim...

Minha querida, envio-te alguns olhares destas minhas andanças e aguardo a tua visita num destes dias (próximos, atrevo-me a insinuar). Talvez, quem sabe, não seja eu o único médium de palavras por aqui.

Um abraço terno

E.F.

(Maria, Estórias do Bicho de Seda)

A Máquina do Tempo

Rui Werneck de Capistrano, ou mais um Escritor Famoso, escreveu A Máquina do Tempo.

"Não, você não leu direito o título. Ele não queria inventar a Máquina do Tempo. A perseguida por tantos e tantos cientistas sérios ou malucos. Aquela de ir e vir no tempo. De visitar a infância ou a velhice. O que ele queria mesmo era inventar a Máquina de Passar Tempo.(...)" Contin. no blog do Escritor.

15.10.05

O Escritor Famoso entrega os prémios


Pois acabo de deixar a Maria Heli e a Marquesa D'Aires depois de mais um bate-papo mesmo ao pé do Canal, e o Ivar Corceiro - mas esse eu vou encontrando por aqui, o meu querido Contrabaixo 4 the people, a Didas e o Japinho, e os murtoseiros (que nunca falham!) Januário e Joaquim, e o senhor dos 7 meses, e o George Cassiel que andou numa azáfama toda a noite - de quem nos despedimos e re-saudamos umas duas vezes - :), e do André do Devaneios sem sentido - que foi o fotógrafo da noite (obrigada André!) e, é claro, da Lilly Rose, que é lindíssima, deslumbrante e que ninguém jamais vai esquecer - ;)!

E assim, com poucos mas bons, passei uma noite bem divertida! Ah, e imaginem que o Manuel do Pé de Meia nos telefonou e que fiquei mesmo com vontade de o raptar um dia destes para outra noite de amena e tonta (sabe tão bem!) cavaqueira.

Mas hoje, para além de conversa, uvas, chocolate, o bolo de ananás da Joana e uns drinks, entregamos um livro aos vencedores das edições anteriores do Escritor Famoso. Ainda se lembram?

Ivar Corceiro, por Helena
Maria Heli, por O Escritor Famoso
Didas, por O Sorriso
Marquesa D'Aires, por Com Saudades de Helena


E agora vamos lá voltar ao III Concurso! O Júri votou nos 19 textos e o resultado a que chegou foi o seguinte:

Dois textos, para além de As Palavras da Memória de Palavras em Linha (já seleccionado pelos visitantes do blog), foram distinguidos com a Pena do Escritor Famoso (acabo de inventar o galardão). Esses textos são:


  • Agulhas Ferventes de George Cassiel - e o autor já teve o privilégio de receber o seu prémio



Estes dois textos tiveram as pontuações médias mais elevadas.

Mas acrescento que os textos de Prólogo, de Ivo Cação, de Ivar Corceiro, de Palavras em Linha, da Mushu e de Hipatia ficaram mesmo muito próximos. A qualquer um destes textos foi mesmo atribuida a nota máxima (10) por algum membro do júri. Tivemos alguns casos de fortes paixões individuais: os textos da J.P., da Fausta Paixão ou do Manuel (mfc), mas aí o júri esteve mais dividido, o que se reflectiu na pontuação final global. Todos concordamos que a qualidade dos textos foi bastante elevada, que o nível de escrita era muito bom, variando depois, apenas, a percepção de cada um sobre o grau de originalidade ou a eficácia na defesa da ideia central do texto, por parte de cada autor. Acrescentem-se a estes, outros factores ainda mais subjectivos, como o da empatia que se estabeleceu com o texto, ou a emoção que este nos transmitiu (comoção, surpresa, humor,...).

E assim, depois de agradecer MUITO a todos os participantes a mestria, o empenho e a simpatia que revelaram ao decidirem participar neste Concurso, e de agradecer também MUITO aos meus colegas "júris" o esforço e a atenção que dispensaram a esta iniciativa (e é tão bom partilhar estas tarefas e sentir que entraram nisto com o melhor dos espíritos!), dou por terminada a terceira edição do Concurso O Escritor Famoso!

A próxima edição vai ter início no dia 2 de Novembro mas ... vai ser diferente! :)

Fiquem agora com os três textos vencedores.

  • As Palavras da Memória, por Palavras em Linha
Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais. O que conservamos na memória permanece em nós e, se não o dizemos, é como se nunca tivesse acontecido. E dizemo-lo quando paramos.
Por isso trata-se, agora, de parar mesmo. Exercício de pacificação do espírito, memória que se acende em busca dos cheiros e dos gostos, das cores e dos brilhos que ficaram na infância e vão ressoando no tempo. Tempo de menino a combater os piratas, de espada em punho, num cantinho do quarto, herói de histórias inventadas, reais no espaço mágico do cavalinho de baloiço e da mesa redonda à volta da qual se sentavam os cavaleiros feitos de casacos sobre o espaldar das cadeiras. Tempo de mãos de mãe sobre os olhos, sobre a lágrima que molhava a face, sobre o bocejo do cansaço que sobrevinha às horas de brincadeira. E de voz de mãe a embalar nas cantigas. Tempo de janela fechada ao voo dos monstros que povoavam os pesadelos dos dias mais frios, quando o Outono derramava sombras amareladas e o cair da tarde deixava desenhos sobre o papel da parede. Tempo de colo, tempo de passos contados sobre o xadrez do ladrilho a caminho do baloiço pendurado na árvore mais robusta do jardim. E de gnomos sob a folhagem, ao fundo da sebe, aguardando a minha visita. E de línguas de sol a fazerem soar os bons dias, melodia da brisa que entreabria a copa das árvores e chegava a tempo de aquecer o gelo dos caminhos onde os homens pequeninos obedeciam às minhas ordens. Tempo de regressar a casa, ao cheiro dos livros, imponentes no couro das lombadas e nas letras que a minha infância já sabia serem tesouros. Tempo de azinho queimado em labaredas que atraíam os gatos e com eles os meus olhos que já escreviam palavras no cheiro dos veludos da sala.
Tempo em que a memória se enche de palavras. E de saudade.


  • Agulhas Ferventes, por George Cassiel
"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. Tudo no mesmo sítio, sem novidade, muito despida, quase sem móveis, apenas o suficiente e muita coisa espalhada pelo chão em pequenos montes, livros em montes que já não cabem nas prateleiras, roupa em montes, sacos em montes, uma cordilheira de objectos que forma a minha casa, percorri-a como um caminhante nas montanhas, mas sem o sabor da descoberta, do desafio da exploração, para não perder a concentração no meu objecto último, a secretária sob a janela do quarto – um dos poucos móveis, tal como a cama. A escrivaninha com vista para as árvores, para o destino que as agita e para o vento que empurra os transeuntes no passeio lá muito ao longe, a escrivaninha onde destruía papéis num fervor incontrolável, uma ânsia esfomeada de folhas brancas que permaneciam virgens, e voltava para os montes, procurando livros, ou comida, para me acalmar, a cordilheira acalmava-me, mas não me distraía! Entrei como um actor entra em cena e fechei a porta. Encostei-me com a sensação de segurança, ali ninguém me poderia fazer mal, nem os sonhos, nem eu próprio, ou talvez só eu próprio, ali era eu comigo, era o habitat da minha existência perturbada, mas era apenas eu, e eu era o meu único inimigo, o meu inseparável assassino, a minha própria destruição que não se pode arrancar como quem arranha a pele – não sai, nós não saímos de nós mesmo, apenas nos transformamos; e não sabia como fazê-lo ou não queria acreditar que fosse da forma que a carta do dia anterior me sugerira; essa seria uma transformação radical, a mudança última de pele, o arranhar final da própria alma. Seria o assassino de mim mesmo. Mas ali, em casa, nada me poderia fazer mal, só eu próprio – era o que temia. Encostado, retomando o ritmo de respiração normal, mais calmo, reencontrando-me, deixei os dedos saborearem os veios da madeira envelhecida da porta, estava de regresso. Um banho, roupa lavada, um livro e um café – como o regresso à normalidade se pode resumir a coisas tão simples, a uma satisfação das necessidades físicas e das de conforto intelectual; automedicara-me: para afastar os pensamentos que me perturbavam desde o dia anterior, precisava sentir alguma normalidade, ainda que a mesma normalidade que me perseguia e que me deixava insatisfeito com a vida, mas precisava urgentemente dela, para que não me perdesse e não me deixasse levar num percurso sem regresso, para não afunilar a vida, uma "afunivida" era o que vivia; automedicara-me um banho, roupa lavada e café com um livro, isso
bastar-me-á,
disse-o em voz alta, libertando os pensamentos. Reconheci a necessidade de uma mudança, ainda que ligeira, no pulsar da energia destruidora que me assolara no dia e na noite anterior.
Bastar-me-á.
Despi-me, escolhi roupa de entre um dos montes e deixei correr a água do duche até atingir a temperatura ideal, muito quente, quase no limite da resistência, a ferver para lavar profundamente, para me limpar de mim mesmo, para me desincarnar; entrei e deixei, durante muitos minutos, os jactos de água do duche furarem-me as costas, como agulhas ferventes, longos minutos
(…)
e o silêncio, também fervente, em longos e largos minutos, como se o tempo tivesse as medidas do espaço,
(…)
chovia em mim o calor do silêncio, num enorme volume de minutos,
(…)"

  • A Casa dos Espirros, por Lino Centelha
Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.

Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. De um ponto de vista puramente mecânico a transcendência e o pó estão muito próximos. E eu tinha uma certa tendência para os pormenores. Enquanto o catequista falava do divino e do sagrado eu fixava os olhos nos finos raios de luz que me passavam em frente ao nariz e observava os pontinhos de pó que se moviam como peixes num aquário.

Dividir um grão de pó ao meio parecia-me, já então, uma façanha científica a meio caminho entre a 'performance' artística e o êxtase religioso. "Meio grão de pó é ainda um grão de pó" - pensava eu enquanto elaborava uma trama maquiavélica capaz de dar ao pó o estatuto de sexto ou sétimo estado da matéria - "onde terminará isto?". Algo que cortado ao meio é ainda ele próprio desafia as leis da conservação, as leis do movimento e, quiçá, a lei do aborto.

Mas tudo na vida tem um preço. No meu caso, não sei o que veio primeiro se a vocação, se a alergia.

Esta casa onde agora venho ocasionalmente para uma manutenção aligeirada foi sempre uma espécie de paraíso do pó. A ideia de que tudo se transforma em pó tem aqui o seu paradigma. Os granulos infinitesimais que cobrem os chão, os móveis, todos os objectos residentes, parecem surgir do nada; materializam-se para encher sucessivos sacos de aspirador. Em criança a casa era uma sinfonia de espirros e agora começo a espirrar a trinta quilómetros daqui. Os médicos dizem que é uma alergia psicológica o que dá um certo orgulho, principalmente depois que fiz a pós-graduação em pós modernos. Sem falsa modéstia, sou internacionalmente conhecido como a maior autoridade em pós. O doutoramento, que estou a preparar, vai ser sobre pós tits - pós que resultam de uma interacção humana com a realidade, quando a memória começa a desfazer-se.

O meu pai continua a chamar a este lugar, com o azedume habitual, a casa do pó, ignorando a designação original - 'Silly cactus' - enigmático nome dado por um antepassado Centelha, de origem irlandesa, que veio para cá durante as invasões francesas.

Começa a ser difícil escrever. O bico da esferográfica está cheio de pó e a tinta não flui, o meu nariz está inflamado e já não consigo ter os olhos abertos com tanta comichão. Não fora o pó e teria sido um escritor famoso.



[Lino Centelha e Palavras em Linha irão receber por Correio o respectivo prémio (agradeço que indiquem uma morada)]

14.10.05

É HOJE!



21H30 - LIVRARIA O NAVIO DE ESPELHOS
ENCONTRO DE BLOGGERS
"O ESCRITOR FAMOSO"

Rua 31 de Janeiro, 10 - Aveiro
tel: 234 420 197
(Estão a ver o triângulo 2-4-6? A Livraria fica aí, "encostada" ao 2 )

Escrutínio (1a Fase)


Talvez andem a ler o último Ensaio de Saramago... porque neste escrutínio foi o voto em branco que prevaleceu! Tivemos muitas visitas com comentários sobre a extensão da obra a ler ou sobre a incapacidade para tomarem uma decisão dada a qualidade de todos os textos, mas votinhos mesmo, apenas 18! Não se faz, seus preguiçosos blogosféricos! #°§##^\[#]

Que essa míngua não desvalorize o texto que reuniu a preferência de 4 honrosos leitores, nem os três textos que somaram um par de votos, nem os outros oito diferentes textos que captaram 1 voto, e muito menos aqueles que nem foram nomeados... porque o júri ainda está a deliberar e, como sempre, é possível que tenha uma opinião ligeiramente diferente!

Não obstante, podem tomar conhecimento do ranking de preferências definido pelos 18 corajosos eleitores:



A decisão final do júri será comunicada mais logo na livraria que já conhecem. Vão estar presentes os vencedores das edições anteriores para receber o seu prémio e eu espero que os actuais concorrentes também possam comparecer. Palavras em Linha já tem garantida a oferta de um livro. Mas pode não ser a única...

Até logo!

13.10.05

Allô allô Escritor Famoso

Eu só vou dizer isto uma vez: as votações abertas a todos os visitantes terminam hoje às 24:00. Escolham o vosso texto preferido!
as votações.... 24:00... texto preferido!
votações...preferido
!


(previsões às 13:30: muita afluência às urnas mas ganha o voto em branco)

12.10.05

O Júri do III Concurso

Vamos manter a mesma equipa + 2, a saber:

- a Sónia Sequeira (O Navio de Espelhos, patrocinador do Concurso)
- o 4the people, que também é Contrabaixo às Quintas
- a Plan(O)alto
- a Viajante
- a Je

e as duas vencedoras da edição anterior do Escritor Famoso:
- a Didas
- a Marquesa D'Aires

Se ainda não os conhecem, podem aceder ao blog de cada um... e ficam com uma ideia ou com muitas! Já quanto à Marquesa, é outra história, porque ela (ainda) não tem blog ou página pessoal na net. Dada a característica rara (sorriso), ela tem direito a uma apresentação pessoal "especial". Directamente de uma ilha, chegaram-me dois textos - vejam os dois posts anteriores. Eu decidi não acrescentar mais nada. Para outras informações, só na próxima sexta-feira. A Marquesa vai apanhar um avião e então vamos poder conhecê-la pessoalmente. E vocês, vão lá estar?

11.10.05

Fora de Concurso

Oh! Por delicadeza
Deixai vir a mim mais lux(o)
que a Bovary não é outra
que não eu

e até o escritor
famoso se senta
sobre o seu próprio cu
(mas isto é Montaigne
que tinha fama de solitário)

o Pessoa por modéstia deu a fama a mais quatro,
o Carneiro egoísta bebeu a estricnina sozinho,
quando apareceu a Tv ainda vivia o Almada
e quanto a futurismos tenho dito

à luz do seu candeeiro moral o Rilke tinha desistido da literatura à sua terceira carta a um jovem poeta

e se o INEM aparecia? lá se ia a fama do Werther
também não outro
que não eu

havia um escritor famoso que ia muito ao meu prédio mas saía depressa

um dia apertei a mão a um poeta famoso e ele tinha as veias salientes

famoso era o Kafka. com um aspecto daqueles não se passa despercebido

em pachecal anonimato ;)


Texto "largado" num comentário. Homepage imaginária: omeuidiotaémaisidiotaqueodoDostoiewsky.sónaquela.


III Concurso do Escritor Famoso. Não se esqueçam de votar !
Aqui não existem Fátimas Felgueiras nem Avelinos nem Valentins!

Escritor Famoso. Eleições Abertas


MRF

Chegou o momento das votações. As urnas estão abertas a partir deste momento e até às 24 horas do dia 13 de Outubro. Já conhecem as regras: todos podem votar, incluindo os autores dos textos (num outro texto que não o seu). Só deve ser indicado UM texto (eu sei que é difícil...) como o PREFERIDO. A nomeação desse texto deve ser feita nos comentários deste blog. Na vossa avaliação tenham em consideração se existe ligação entre o texto e o mote apresentado (mesmo que essa ligação não tenha que ser óbvia!). Se quiserem, apresentem as razões por que fizeram a vossa escolha.
Aos autores agradeço a generosidade implícita na resposta a este desafio e, como poderão comprovar, a qualidade elevada dos textos.

Eis os autores e textos a concurso!

1. de George Cassiel, Agulhas ferventes:
"Entrei como um actor entra em cena, sem nada que me despertasse a atenção, porque tudo sempre estivera lá, nos mesmos sítios desde o início, como os adereços sobre o palco deverão estar para que o actor não se perca, sem novidade, sem diferença, para que a indiferença provocada seja estímulo à concentração absoluta no corpo, no corpo do actor, no meu corpo quando entro em cena, em casa. (...)" Contin. aqui.

2. de Palavras em Linha, As palavras da memória:
"Há momentos em que paramos. Subitamente. Como se o corpo estivesse em exaustão e precisasse de recompor-se da corrida diária que é a vida.
Não se trata de parar para pensar, para desbastar a ideia que anda há semanas a ocupar a mente como onda espraiando-se sobre o areal da praia em dia de Agosto. Paragens dessas tive-as amiúde. Resultaram em páginas saídas das minhas mãos como pedaços de mim e espalhadas depois pelos olhos dos outros, olhos atentos, olhos de converter palavras em coisas acabadas com desfechos estranhos à minha compreensão.
O que deixamos escrito sai de nós para não nos pertencer mais.(...)" Contin. aqui.

3. de Hipatia do Voz em Fuga, Les voix du silence:
"Percorreu cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhou os livros caiados de pó de casa antiga e com visitas retardadas pelos afazeres longe demais. Em cada espaço, uma memória salta-lhe ao caminho, um sorriso empoeirado de quando era tão mais fácil sorrir. Percorreu cada espaço, cada quarto. Sentou-se nas cadeiras do costume, como se nunca tivesse partido. Respirou os cheiros, cheiros familiares e antigos, de madeira verdadeira e linhos amarelados. Percorreu cada espaço, como quem percorre de mansinho uma vida inteira. (...)" Contin. aqui.

4. de Ivar Corceiro do Bagaço Amarelo, alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui:
"Durante a noite alguém construiu uma fábrica a muitos quilómetros daqui, e eu sentei-me no parapeito da janela onde ainda estou. Nunca vi Vera passar o túnel. São tantas as vezes que um homem olha para o chão, penso agora, que não encontro resposta para a forma preocupada como a mobília me encara. É verdade que estou a olhar para o chão, e que me acalento na fraca pulsação da luz matinal. É verdade que talvez Vera ainda venha hoje. As árvores caminharam durante a noite aproximando-se da casa, e algumas estão deitadas lá fora à espera duma história de amor. As histórias de amor são sempre ridículas, penso agora, e não percebo porque geram tanta expectativa.(...)" Contin. aqui.

5. de J.P. do Faz de Conta, sem título:
"Embebedei-me de aromas ao tocar a pedra áspera. Arcada bruta nascida do sonho de mostrar poderio. Palpei de novo as raízes da infância, quando as azedas eram mais azedas, e o coração menos brando.
Que carranca séria, disseram-me. - Solta o riso que as flores agradecem!
Muda encaracolei-me no axadrezado hipnótico. O eco dos passos uma cortina de fumo.(...) Contin. aqui.

6. de Luna do Loucura e Nata, O Retiro do escritor:
"O meu retiro nada tem de novo comparado com outros, é um local tranquilo onde me encontro comigo mesmo, onde tenho o silêncio, onde me viro mais para dentro do que para fora.
Valorizando mais o silêncio que o barulho. Os mil barulhos com que nos vamos habituando a preencherem o dia-a-dia.(...)" - Continua aqui.


7. de Fausta Paixão, do Não Compreendo os Homens, Jorge Rebelo Tinto:
"Eu já devia estar avisada sobre a complexidade da mente artística. Não é que cada homem seja um artista ou contenha em si um artista, que as artes masculinas são assim umas coisas mais ligadas ao bricolage, coisas de encher garagens ou arrecadações com todas as inutilidades que já não cabem em casa. Mas dizia eu que devia estar avisada sobre as artes ditas nobres, uma vez que o pianista e o dançarino tinham arte inata e nem por isso deixaram intacta a minha alma apaixonada. Artifícios da vida! E se ela não é mais do que um rame-rame feito de rotinas pasmadas, de vez em quando lá cedemos à pitadinha de loucura que um artista traz e transmite ao cinzentinho dos dias.(...)" Contin. aqui.

8. de
Sisífo, Recuo:
"Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita a voz de um tempo que me desafiou a perecer apenas com todas as fomes saciadas.
Aí, nesse pedaço pouco atento da gratidão, estarão também soletrados os passos que dei para deixar de sentir o que quer que fosse pela verdade.
Nada de perturbante.
Pedaços e mais pedaços é tudo o que se vai conseguindo sugerir como vida.(...)" Contin. aqui.

9. de Ivo Cação do
Zumbido, A Saphira:
"Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.
Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.(...)" Contin. aqui.

10. de Mushu do
Ao Sabor do Vento, Xadrez:
" Sentou-se, cansado de tanto debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. Escreveu-as na leve esperança de que um dia tomassem vida, se organizassem e formassem algo com sentido.Adormeceu.Entrou pela porta de vidro que dava para o jardim, correu ao quarto para buscar as peças de xadrez, tencionando com elas jogar nos ladrilhos da entrada como era habitual.- Mãeeeeeeee! Onde está o cavalo?- O do xadrez? Vi-o passar aqui há pouco. Acho que foi para a rua.(...)" Contin. aqui.

11. de Joaquim Pavão, (sem título):
"Queimei-me! O dedo não arde, apenas dói. Volto a colocar o isqueiro no chão. Levanto-me? É isso! Estou a levantar-me. Tenho que agarrar-me. Tantos solavancos! Onde vou? Usa os olhos, usa os olhos. Só vejo manchas arrastadas em confusas direcções. Parei? Acho que parei, embora o corpo sinta ainda o passado no presente. Calmaria? Parece que parou. Olho e já estou na porta. Respirar, meu deus! Respirar? Inspiro, expiro, repetição. E mais repetição. Mão na maçaneta e rodo.(...)" Contin. aqui.

12. de Rui Gonçalves, do Crónicas de (e depois da) Califórnia, O Tempo:
"Mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Porque "o tempo faz com que as coisas mudem", pensei eu nessa altura. Mas o passar do tempo apenas nos faz ficar com menos tempo. Tempo esse, que pretendemos que seja para mudar aquilo que não mudámos a seu tempo.
A verdade é que nunca acreditei na história do D. Sebastião, mas como todos aqui, acredito que haverá um tempo melhor que este. Um tempo em que terei tempo para fazer aquilo a que gosto de dedicar o meu tempo.(...)" Conti. aqui.

13. de Lino Centelha, A casa dos espirros:
"Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.
Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. (...)" Contin.
aqui.

14. de
Prólogo, O coito:
"Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar. (...)" Contin.
aqui.

15. de Finúrias do
Ministério da Soltura, Carta à insónia:
"Cinco minutos depois das 6, canta a noite sem sono. E mais uma noite ! Deambulo pela casa já de madrugada , uma insónia que tome conta de min . Certamente, quando só no silêncio próprio da noite , inconscientemente acabamos por pensar , e pensar , e pensar ...com ou sem sentido , o que gostaríamos de ter feito, e deixamo-nos cair no esquecimento da hora. É nestas alturas que sentimos a vontade de tudo agarrar, e recriar ...os castelos de criança, já esmagados pelo tempo , falar àqueles que o próprio tempo fez desencontrar, reencontrar o amigo imaginário que fazia companhia quando a mãe apagava a luz do quarto. O medo do escuro deixava de existir ! (...)" Contin.
aqui.

16. de Caiacaina do
Bis morgen, O Escritor Famoso e os elos do passado:
"Levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância. Voltei a olhar o baloiço e lentamente atravessei o jardim de todas as minhas recordações. Os meus passos ressoavam no saibro solto e por entre a folhagem da velha árvore, parecia-me ver os olhos de Helena a admirarem-me.Em passos lentos dirigi-me à minha casa. Cruzei os arcos de pedra cansada pelos anos que seguravam as ogivas.(...)" Contin.
aqui.

17. de Francisco del Mundo, Mestre, que p. de vida:
"Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Walter Herrman é uma delas! Este homem, com um H muito grande, tem 25 anos e é um basquetebolista argentino. É um atleta tremendo que tem provado a vitória na derrota e a derrota na vitória. Mas contemos a sua estória...Em Julho de 2003, estava ele em La Plata no estágio quando, ao ligar para casa, descobriu que a sua namorada tinha perdido a vida num acidente. Para quem já passou por isto, sabe que a dor (e impotência) é tão grande que se amaldiçoa a vida. (...)" Contin. aqui.

18. de mfc do Pé de Meia, (sem título):
"
A noite estava fria e já ia alta. Sentei-me naquela poltrona junto à janela a olhar para a árvore, de que apenas se perscrutava o recorte escuro contra o mais escuro do céu. Não ousei acender a lareira e virei costas à estante, que sempre foi um aconchego. Via apenas a árvore negra na minha frente. O frio húmido entrava pela janela, mas precisava de estar ali a contemplá-la. Já a tinha visto mil vezes, mas não assim apenas recortada. Estavamos imóveis os dois, fixos um no outro. Fomos companhia recíproca desde há muito, se bem que ela fosse uma irmã mais velha e me tivesse ensinado como estar na vida... Dizia-me muitas vezes: "Olha para mim!" (...)" Contin. aqui.

19. de Carlos da Alameda dos Oceanos, Um tempo alegremente incerto:
"
Podia estar à espera de um barco que me levasse, a alma animada pelas coisas que se não conhecem e que nalgumas partidas se revelam intensas e felizes, antes de tudo ou alguma coisa se passar.
Poderia olhar em volta, as paredes e as pessoas, e ficar com pena de as deixar por algum tempo (um tempo alegremente incerto), olhar para as minhas coisas e pensar que vão ficar sozinhas por algum tempo (um tempo alegremente incerto). (...)" Contin. aqui.

Divulguem nos vossos blogs o início das votações do III Concurso do Escritor Famoso. Não se esqueçam de que a comunicação dos resultados finais (que supõe a avaliação do "grande júri") acontecerá no dia 14 de Outubro em Aveiro (livraria O Navio de Espelhos, às 21:30) no Encontro de Bloggers que aqui vai ocorrer... e para o qual todos estão convidados!

10.10.05

O Escritor Famoso. Faltam 4 horas para o fim do prazo de entrega de textos.

... Mas entretanto chegaram mais 5 textos e alguns dos autores são estreantes no Clube. Espero que apareçam todos no próximo dia 14 de Outubro na Navio de Espelhos para o encontro com o Escritor!

13. de
Lino Centelha, A casa dos espirros:
"Sentado nos bancos castanhos da casa branca, ouvi um catequista cinzento, com olhos azuis e cabelo ruivo, vestido de verde, com um livro negro nas mãos rosadas, dizer, numa quarta-feira de cinzas, entre dentes amarelos, que éramos pó e em pó haveríamos de nos tornar. O catequista cataclísmico não fumava. Também não bebia. Não fazia nada a não ser dizer-nos que haveríamos de ser pó. E tossia muito lançando perdigotos azulados sobre o meu horizonte de observação.
Foi esta questão do pó e dos perdigotos que me empurrou definitivamente para a engenharia. (...)" Contin.
aqui.

14. de
Prólogo, O coito:
"Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar. (...)" Contin.
aqui.

15. de Finúrias do
Ministério da Soltura, Carta à insónia:
"Cinco minutos depois das 6, canta a noite sem sono. E mais uma noite ! Deambulo pela casa já de madrugada , uma insónia que tome conta de min . Certamente, quando só no silêncio próprio da noite , inconscientemente acabamos por pensar , e pensar , e pensar ...com ou sem sentido , o que gostaríamos de ter feito, e deixamo-nos cair no esquecimento da hora. É nestas alturas que sentimos a vontade de tudo agarrar, e recriar ...os castelos de criança, já esmagados pelo tempo , falar àqueles que o próprio tempo fez desencontrar, reencontrar o amigo imaginário que fazia companhia quando a mãe apagava a luz do quarto. O medo do escuro deixava de existir ! (...)" Contin.
aqui.

16. de Caiacaina do
Bis morgen, O Escritor Famoso e os elos do passado:
"Levantei-me e dei passos à toa pelas veredas do jardim da minha infância. Voltei a olhar o baloiço e lentamente atravessei o jardim de todas as minhas recordações. Os meus passos ressoavam no saibro solto e por entre a folhagem da velha árvore, parecia-me ver os olhos de Helena a admirarem-me.Em passos lentos dirigi-me à minha casa. Cruzei os arcos de pedra cansada pelos anos que seguravam as ogivas.(...)" Contin.
aqui.

17. de Francisco del Mundo, Mestre, que p. de vida:
"Mestre, certas pessoas tem toda a legitimidade para dizer "Que puta de vida!"... Walter Herrman é uma delas! Este homem, com um H muito grande, tem 25 anos e é um basquetebolista argentino. É um atleta tremendo que tem provado a vitória na derrota e a derrota na vitória. Mas contemos a sua estória...Em Julho de 2003, estava ele em La Plata no estágio quando, ao ligar para casa, descobriu que a sua namorada tinha perdido a vida num acidente. Para quem já passou por isto, sabe que a dor (e impotência) é tão grande que se amaldiçoa a vida. (...)" Contin. aqui.

O Escritor Famoso


MRF
No blog do Escritor Famoso, para além de todos os textos, estão agora os links para todos os participantes e membros do júri, desde a primeira edição. Vão lá conhecer o "clube".
Entretanto, continuam a chegar novos textos! (o prazo termina às 24:00 de hoje)

11. de Joaquim Pavão, (sem título):
"Queimei-me! O dedo não arde, apenas dói. Volto a colocar o isqueiro no chão. Levanto-me? É isso! Estou a levantar-me. Tenho que agarrar-me. Tantos solavancos! Onde vou? Usa os olhos, usa os olhos. Só vejo manchas arrastadas em confusas direcções. Parei? Acho que parei, embora o corpo sinta ainda o passado no presente. Calmaria? Parece que parou. Olho e já estou na porta. Respirar, meu deus! Respirar? Inspiro, expiro, repetição. E mais repetição. Mão na maçaneta e rodo.(...)" Contin. aqui.

12. de Rui Gonçalves, do Crónicas de (e depois da) Califórnia, O Tempo:
"Mais um dia! Cheguei aqui há algum tempo e desde aí que tenho esperado que o tempo passe. Porque "o tempo faz com que as coisas mudem", pensei eu nessa altura. Mas o passar do tempo apenas nos faz ficar com menos tempo. Tempo esse, que pretendemos que seja para mudar aquilo que não mudámos a seu tempo.
A verdade é que nunca acreditei na história do D. Sebastião, mas como todos aqui, acredito que haverá um tempo melhor que este. Um tempo em que terei tempo para fazer aquilo a que gosto de dedicar o meu tempo.(...)" Conti. aqui.

O Escritor Famoso


É hoje, às 24:00, que termina o prazo de entrega de textos. Vá lá, despachem-se!:)
Entretanto o Escritor Famoso recebeu novos textos. Ei-los:

7. de Fausta Paixão, do Não Compreendo os Homens, Jorge Rebelo Tinto:
"Eu já devia estar avisada sobre a complexidade da mente artística. Não é que cada homem seja um artista ou contenha em si um artista, que as artes masculinas são assim umas coisas mais ligadas ao bricolage, coisas de encher garagens ou arrecadações com todas as inutilidades que já não cabem em casa. Mas dizia eu que devia estar avisada sobre as artes ditas nobres, uma vez que o pianista e o dançarino tinham arte inata e nem por isso deixaram intacta a minha alma apaixonada. Artifícios da vida! E se ela não é mais do que um rame-rame feito de rotinas pasmadas, de vez em quando lá cedemos à pitadinha de loucura que um artista traz e transmite ao cinzentinho dos dias.(...)" Contin. aqui.

8. de
Sisífo, Recuo:
"Na parte mais dramática do meu epitáfio há-de ficar descrita a voz de um tempo que me desafiou a perecer apenas com todas as fomes saciadas.
Aí, nesse pedaço pouco atento da gratidão, estarão também soletrados os passos que dei para deixar de sentir o que quer que fosse pela verdade.
Nada de perturbante.
Pedaços e mais pedaços é tudo o que se vai conseguindo sugerir como vida.(...)" Contin. aqui.

9. de Ivo Cação do
Zumbido, A Saphira:
"Et in Arcadia ego. Não, não sei latim. Ficou-me esta frase de há muitos anos quando revivia o passado em Brideshead. Sem propriedade, diga-se. Aconteceu apenas porque me lembrei de Saphira. E a memória é sempre uma feiticeira boa que vem em auxílio de quem já não sabe sair do estreito caminho da evidência.
Saphira esteve comigo no lugar que primeiro defini como meu. Filho único, avesso ao encontro fortuito com a realidade rude e agreste, encontrei em Saphira a companheira, que não sendo capaz de distinguir entre a aventura e a conveniência, me levava para os espaços ocultos onde eram possíveis os devaneios.(...)" Contin. aqui.

10. de Mushu do
Ao Sabor do Vento, Xadrez:
" Sentou-se, cansado de tanto debitar letras naquela folha de papel. Desta vez letras ao acaso, sem nexo. Escreveu-as na leve esperança de que um dia tomassem vida, se organizassem e formassem algo com sentido.Adormeceu.Entrou pela porta de vidro que dava para o jardim, correu ao quarto para buscar as peças de xadrez, tencionando com elas jogar nos ladrilhos da entrada como era habitual.- Mãeeeeeeee! Onde está o cavalo?- O do xadrez? Vi-o passar aqui há pouco. Acho que foi para a rua.(...)" Contin. aqui.