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17.6.05

À escuta #8


Joris Van Daele

Em casa da minha avó todos se sentavam à mesma mesa. Não havia patrões e empregados, adultos e crianças, homens e mulheres. Havia todos à mesa! porque todos trabalhavam.

Eu era a mais nova e tinha um estatuto um bocado diferente porque também estudava e era provável que continuasse a estudar por muito tempo.
Pelo menos era assim que eu sentia que o Narciso pensava.

O Narciso tinha os olhos bonitos verdes bonitos mais do que eu jamais vira e no Verão tirava a camisola e ficava em tronco nú. Era tímido e baixava muitas vezes os olhos quando falava. Amava-me e amava-o. Em surdina. Contra todas as barreiras sociais dramas injustiças azares misérias que inventava. Os olhares meios largos fugidios intensos e ternos davam-nos certezas.

Para poder estar com ele interessei-me por cimento areia água enxada, como fazer um círculo no meio e ir misturando os ingredientes da massa que colava os tijolos nos muros que era necessário construir por ali, galinheiro curral eira pátio quintal e fim do quintal e o outro terreno.

E depois íamos trocando palavras, cautelosamente. Ovídio poeira menina não se suje entrei na desfolhada saiu-lhe o milho-rei? uvas e ramadas vinho americano a massa tem água a mais já me distraí! vou buscar bebidas. Um dia ele pediu-me que o ensinasse a falar francês. A irmã, que tinha ido apanhar laranjas para a Bélgica, acabara colhendo noivo e bilhete de ida sem volta. E o Narciso queria fazer boa figura no casório. Je suis Nicole Robert le chien Patapouf comment allez vous merci na pas de quoi.

Lições de cimento e de francês. que duraram algumas semanas. Só isso. mas nunca mais me esqueci.

30.5.05

Já sonho com Ngorongoro XVI


Joris van Daele

Ninguém conhece a história da próxima aurora.
(provérbio africano)

Ontem sentei-me no jardim a falar com o Andwele. Tu dormias, assim como o Bagaço, e nenhum sonho parecia querer despertar-vos. Pedi-lhe que me falasse da sua aldeia. Ele falou num tom sério, falava de saudade e de desgosto, mas terminava sempre todas as frases com uma nota de alegria. Não me cansava de ouvir falar de Magadi. Os olhos dele ficavam cada vez mais límpidos, e através dos seus olhos, também os meus. O Andwele tem uma boca bonita e um sorriso gracioso, emana paz. E assim com ele, pouco a pouco, xhuia-xhuia, a paz voltou.
Por volta das seis horas da manhã, acordei com o pássaro que canta debaixo da minha varanda. Existe uma gaiola dourada enorme e sobre ela pousa sempre esse pássaro. É uma ave canora rara. Pensei decidiu desafiar o mundo tomando posse dessa gaiola. E com esse pensamento, descobri que sorria novamente.

Depois o reflexo desta luz, deste amanhecer nas águas da piscina. E não resisti a apossar-me dela. Durmam todos e que nenhum sonho vos desperte. Não quero tudo. Só este momento. Assim.

Ouço ao longe uma música.


Banda sonora de Le Grand Blue, Eric Serra.

28.5.05

Confissões Sexuais de Um Anónimo Português V


Joris van Daele

Repeti o 11° ano, repeti o 12°, voltei a repetir o 12° para melhorar a média, mas com 20 anos consegui entrar em Engenharia dos Têxteis na Covilhã.

Não se pode dizer que não me tenha servido para nada essa experiência. Para além de ter ficado a odiar climas frios, nunca mais perdi um certo pragmatismo que me foi muito útil para o resto da vida. E lamentavelmente, foi pouco tempo depois de sair da Covilhã que descobri que estava com um início de tuberculose. Aqueles ares até me podiam ter feito bem.

Mas mal vi a Paola percebi que tinha que a seguir. A Paola era uma estudante de design industrial que apareceu na Covilhã para pesquisar técnicas de tecelagem tradicionais e a evolução dos processos de fabrico a partir das formas originais. Eu vi logo que era imperativo conhecer e pertencer ao mundo que produzira uma pessoa com aquela beleza e encanto e mistério e reserva e sentido estético. Tive dificuldade em acreditar quando me disse que era virgem e ainda mais, quando salientou que estava noiva. A minha história com ela é longa e marcada por rudes afastamentos e ternas aproximações. Foram necessários mais de doze anos para que ela aceitasse deitar-se comigo.

Vivi assim numa castidade quase absoluta entre os vinte e os trinta e dois anos. De início, a abstinência era-me penosa, mas depois fui-me habituando e deixei de pensar nas mulheres. Em contrapartida, as minhas ocupações e as minhas leituras profissionais, as conversas com gente instruída e inteligente, que não falta em Milão, tornavam-me a vida interessante. A minha saúde era bastante boa; continuava a ter um peito débil e a ser nervoso, mas a tuberculose já não me ameaçava. As poluções nocturnas iam rareando; ocorriam, ao princípio, uma vez por semana, depois uma vez de quinze em quinze dias, e por último, à volta dos trinta anos, uma vez de vinte em vinte dias ou de mês a mês. Eram sempre acompanhadas por imagens dos orgãos sexuais da mulher. Contrariamente ao que tinha lido em livros, verifiquei, pela minha própria experiência, que o instinto sexual é tanto mais estimulado quanto mais satisfeito for e que se apazigua, se acalma, quando se presta menos atenção aos seus apelos. Embora pareça estranho, é indubitavelmente assim que se passam as coisas. Quantas mais vezes se pratica o coito, tanto mais se deseja renová-lo.

Comprovei-o bem nas minhas relações com a Paola. Era logo após vários coitos seguidos e esgotantes que o desejo se tornava mais acutilante, mais agudo, à medida que se tornava difícil satisfazê-lo. E o coito normal já não satisfaz a imaginação excitada: procura-se toda a sorte de refinamentos, de perversões. Neste aspecto, não sou uma excepção, todos os homens me disseram que tiveram uma experiência idêntica.

[Neste capítulo as Confissões sexuais de um anónimo português e de um anónimo russo colaram-se uma à outra. Se preferirem as do russo, e estão no vosso direito, repito que é a ASA que as publica.]

10.1.05

Eu hoje (não) acordei assim


Joris Van Daele


é uma pena, mas eu hoje não acordei assim.
saí da santa terrinha ao som de All I need is Everything,
viajei. mentalmente.
uma sombra ocultou um sinal de sentido obrigatório,
sonhei STOP, parei.

amanhã, logo direi
mas queria acordar assim,
diva


(posted by Contrabaixo)