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7.12.12

Em Louvor da Alemanha


Imperiais, burgueses, grosseria
como de duques de uma Idade-Média
sonhada por românticos no vómito
da cervejaria a mais - e todavia
a pompa de sentir que a realidade
é como esse equilíbrio de ser besta
à beira de sonhar-se o universo.

7/Dez/1870

Jorge de Sena
in "Sequências", colecção Círculo de Poesia da Moraes Editores, 1ª ed. de Julho de 1980

20.8.12

Nada que exista

Tão longe, meu amor, tão longe,
quem de tão longe alguma vez regressa?!
Jorge de Sena


espantou-me encontrar-te assim tão de passagem na tua própria casa
e que houvesse sempre uma pequena luz (talvez benzida) a mantê-la iluminada
não obstante, pensei amar-te (libertar-te) da ponta dos dedos às ideias mais abstractas

a realidade revelou um corpo-defeito desfeito
que eu tocava com nomes pele água panos ternos jeitos
e um silêncio encalhado que me inspirava sonatas e me levava a beijar-te por falta de
palavras

decidi então assim: nunca mais te verei.
vais ser: o rasto dos aviões no céu, idênticos a si mesmos, não singulares.
serei: se quiseres ainda: o mamilo que toca piano. ou seja, nada que exista.

MRF
2005

3.7.12

Ítaca

Ítaca

Quando começares a tua viagem para Ítaca,
reza para que o caminho seja longo,
cheio de aventura e de conhecimento.
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon:
Nunca os encontrarás no teu caminho
enquanto mantiveres o teu espírito elevado,
enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito e o teu corpo.
Nunca encontrarás os Ciclopes ou outros monstros
a não ser que os tragas contigo dentro da tua alma,
a não ser que a tua alma os crie em frente a ti.

Deseja que o caminho seja bem longo
para que haja muitas manhãs de verão em que,
com quanto prazer, com tanta alegria,
entres em portos que vês pela primeira vez;
Para que possas parar em postos de comércio fenícios
para comprar coisas finas, madrepérola, coral e âmbar,
e perfumes sensuais de todos os tipos -
tantos quantos puderes encontrar;
e para que possas visitar muitas cidades egípcias
e aprender e continuar sempre a aprender com os seus escolares.

Tem sempre Ítaca na tua mente.
Chegar lá é o teu destino.
Mas não te apresses absolutamente nada na tua viagem.
Será melhor que ela dure muitos anos
para que sejas velho quando chegares à ilha,
rico com tudo o que encontraste no caminho,
sem esperares que Ítaca te traga riquezas.

Ítaca deu-te a tua bela viagem.
Sem ela não terias sequer partido.
Não tem mais nada a dar-te.

E, sábio como te terás tornado,
tão cheio de sabedoria e experiência,
já terás percebido, à chegada, o que significa uma Ítaca.


Konstantinos Kaváfis. ou Constantine P. Cavafy (Alexandria, 29 de abril de 1863 — Alexandria, 29 de abril de 1933)

Poema publicado em 1910. Tradução de Jorge de Sena.

1.7.12

Sequências




INOCÊNCIA

No pórtico da casa, entre lilases,
o par de namorados brincava de apertar-se as mãos
e de contar os dedos.
Havia sempre um dedo a mais.


SABEDORIA

Tarde da noite, o «party» terminava
num desabar de bêbados
e de falsos bêbados.

O bêbado despiu-se lentamente,
os falsos bêbados rodearam-no.

No dia seguinte, ninguém conseguia lembrar-se do que acontecera.


JORGE DE SENA in "Sequências", Série «América, América, I Love You", colecção Círculo de Poesia da Moraes Editores, 1ª ed. de Julho de 1980
(Os dois poemas foram escritos a 12/Ago/1969)

Ilustração: Cruzeiro Seixas (1969), "Anda espreitar o que há dentro de um desejo", Tinta-da-China s/ papel, 20x15 cm

27.5.12

Sequências


Outro achado de hoje, na Feira de Velharias, foi uma 1ª ed. de SEQUÊNCIAS, de JORGE DE SENA (org. Mécia de Sena, Moraes Editores, 1978). Este exemplar tem a particularidade de ter sido oferecido por Nuno Bragança (1929-1985) a uma Magda "que cresce e faz crescer". O gato era a sua assinatura para os amigos.

Da primeira série de sequências, "Invenções «Au goût Du Jour»", «Breve História Sócio-Cultu
ral da Nação, Incluindo Um Anglicismo»:

D. Tareja fundou
(bastarda)
João I defendeu
(bastardo)
João IV restaurou
(bastarda a casa)
Pedro IV e Miguel ainda lutam
D. João VI chamava à mãe deles «a cabra»
- como pode em grandeza
alguém não ser suspeito de bastardo,
ou como algum bastardo não supor-se grande?


Da série "Clássicos", «Ovação»:

Hoje é muito corrente quando as pessoas
se entusiasmam com um artista ou um político.
No tempo dos romanos era uma espécie reduzida
de triunfo que se concedia quando não
se decretava para o sujeito um triunfo inteiro.

21.2.09

Adão, Eva e o mais

Adão e Eva (1504)
Albrecht Durer

«Uma senhora de Engenho, na Bahia, pelos anos de mil setecentos e tantos, tendo algumas pessoas íntimas à mesa, anunciou a um dos convivas, grande lambareiro, um certo doce particular. Ele quis logo saber o que era; a dona da casa chamou-lhe curioso. Não foi preciso mais; daí a pouco estavam todos discutindo a curiosidade, se era masculina ou feminina, e se a responsabilidade da perda do paraíso devia caber a Eva ou a Adão. As senhoras diziam que a Adão, os homens que a Eva...»

Machado de Assis, «Adão e Eva», Antologia de Contos,
Selec. John Gledson, Vol. 2, Companhia das Letras, 1988, p.274

«Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro às duas horas da tarde.»

Eça de Queirós, «Adão e Eva no Paraiso», Contos,
Edição Livros do Brasil, Lisboa, 2002, p.121

«- Esta Eva!
Foi por isso que anos mais tarde Deus se fez homem e habitou entre nós. Mas o Mundo era mais sabido - tinha comido a árvore do Bem e do Mal - e Deus que a guardara sem lhe tocar e a quem não restara nem uma folhinha seca tinha ficado bondoso para sempre - era de esperar que fosse enganado.
»

Jorge de Sena, «Paraíso Perdido», Génesis,
Edições 70, Lisboa, 1983., p.24

«Tinha Deus aposentado Adão e Eva no Jardim das Delícias, onde viviam como os mais desabusados regalões...»

Aquilino Ribeiro, «Triunfal», Jardim das Tormentas,
Bertrand Editora, Lisboa, 1984, p.97

A Evolução de Darwin

Este caderno que Darwin chamou "B" é o primeiro de uma série dedicada inteiramente à ideia de «transmutação» ou evolução. Iniciado em Julho de 1837, o caderno B é a pedra inaugural do pensamento darwiniano e nele se levantam todas as questões fundamentais da teoria evolutiva: como se formam as espécies, como se relacionam as espécies entre si, como é que ocorrem as adaptações. Neste caderno em que Darwin escreveu «I think...» e esboçou uma árvore evolutiva muito simples com as espécies representadas pelas letras A, B, C e D, escreveu também: «Entre A e C uma relação distante. [Entre] C e B uma gradação subtil. [Entre] B e D uma maior distinção. Assim se formariam os géneros». «Género» é o nome dado ao penúltimo nível na organização da classificação das espécies (cada espécie pertence a um género, estes são agrupados em famílias, que estão agrupadas em ordens e por aí fora) e designa um conjunto de espécies próximas. A árvore de Darwin assume que as espécies de um género surgem por descendência, partilhando um ancestral comum. A maioria dos observadores anteriores a Darwin atribuía o conjunto de espécies semelhantes de um género a um plano de criação divino.

O tema é fascinante. Vale a pena visitar a exposição patente na Gulbenkian até ao dia 24 de Maio comemorativa dos 200 anos do nascimento de Charles Darwin.

Em 1861, Darwin publica A Origem das Espécies. A obra só seria traduzida para português no século XX mas muitos escritores portugueses/lusófonos tiveram acesso a estas novas ideias e quiseram representar literariamente, e de forma crítica, a teoria darwinista da evolução do Homem. Deixo uma pequena lista de contos que reflectem o clima mental de «cientismo antropológico de cariz darwiniano»*:

- «A Dor» (1881), in Contos, de Fialho de Almeida
- «Adão e Eva» (1896), in Contos, de Machado de Assis
- «Adão e Eva no Paraíso» (1897), in Contos, de Eça de Queirós
- «Triunfal» (1913), in Jardim das Tormentas, de Aquilino Ribeiro
- «Paraíso Perdido» (1937), in Génesis, de Jorge de Sena

Na poesia, saliento:
- Poesia I, de José Régio
- Adão, Eva e o Mais, de António Osório


* Sobre a recepção da obra de Darwin em Portugal, nomeadamente em autores do século XIX, veja-se o livro de Ana Leonor Pereira, Darwin em Portugal (1865-1914), Almedina, 2001; e também: «Recantos do Paraíso» de António Manuel Ferreira, em O Conto em Língua Portuguesa, Nº 6, Forma Breve - Revista de Literatura, UA, 2008

Fotos MRF, Fev '09