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22.1.05

Dormir acordado


Adelia Mostar

O que guarda a memória no seu saco? O que é que a leva a descobrir no imenso território do nosso passado aquelas imagens precisas, aquelas cenas precisas que ocupam o lugar das nossas recordações? Entre essas recordações, sempre mais ou menos retocadas, até inventadas, privilegiamos algumas. Raras e tão mais preciosas, aquelas que estão ligadas aos nossos primeiros anos; ainda menos numerosas as que pertencem aos anos posteriores. Como nós as acarinhamos, como nós as conservamos, evoquem elas momentos de felicidade ou de sofrimento, de triunfo ou de humilhação! Elas fazem-nos companhia e nós não queremos que elas nos deixem. Visitamo-las de tempos a tempos, correndo o risco de as repisar; o que preferimos é que elas surjam inesperadamente, prova de que elas, pelo menos, não nos esquecem.*


Hoje, a minha proposta é que as provoquemos, às memórias! Fazemos deste texto o mote, e vamos todos procurar as nossas memórias mais longínquas, felizes ou nem tanto. Se forem passíveis de partilha, guardem-nas aqui.
Vou deixar-vos umas das minhas, das mais antigas. ou talvez eu as tenha inventado.
(1) Tenho três ou quatro anos, estou sentada no chão da sala, e estou a brincar com outra criança. Ela esconde-se debaixo do tapete e faz barulhos que me fazem rir. Estou feliz. (a minha mãe diz que eu adorava imitações de animais e que esse amiguinho sabia "rugir" como os leões)
(2) Teria 2 anos e meio. A minha irmã ía nascer. Enquanto a minha mãe está na maternidade, fico em casa de um casal amigo dos meus pais. Eu acho que me lembro do momento em que eles me deixaram nessa casa. Querem que eu suba as escadas da entrada e eu choro imenso e resisto, não quero que me "abandonem" ali. "Lembro-me" perfeitamente das escadas.



*in J.-B. Pontalis, Le Dormeur éveillé, Mercure de France, 2004, pp 25 (tradução minha)
Caras Editoras, é urgente publicar J.-B. Pontalis!

17.1.05

Por onde tenho andado


Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta

Não se choquem, mas às vezes penso que sou rica. Não que esta ideia me assalte com frequência. Acontece que às vezes, vou ali ou ali ou ainda acolá, sem sair de casa. Posso escolher a agência de viagens e o destino. As agências ficam no escritório, no quarto, no corredor e ainda no sótão. O destino é o que me parecer mais atraente. Desde o início do ano já fiz três grandes viagens. Ao Afeganistão, aos Açores e a Itália e França (estes últimos, cheguei a percorrê-los no mesmo dia) .
Começa com uma enorme leveza, "o que é que me apetece ler hoje?" E sinto o privilégio. Estendo o olhar, que às vezes tem de atravessar objectos, souvenirs, imagens e fotografias antes de a mão alcançar o bilhete de avião. Porquê este hábito de encher as estantes de livros e de pedaços de outras coisas? Umas estatuetas africanas, um velho mapa de angola, umas caixas de madeira, umas miniaturas de uns sapatos de Marie-Antoinette, fotografias dos que adoramos e nossas, sempre mais jovens e felizes, e outros testemunhos de vivências e amigos que queremos lembrar. Não se dê o caso de a memória nos falhar ou falsear.
Mas podemos deter-nos no obstáculo, e sorrir. E depois fugimos com o tesouro.
Os últimos já aguardavam há algum tempo que eu lhes pegasse. As Andorinhas de Cabul de Yasmina Khadra, O Mar Por Cima de Possidónio Cachapa e Le Dormeur Éveillé de J.-B. Pontalis.
Viajar assim, tendo como único critério a descoberta. Sou rica.
Para a viajem, costumo levar um banco, às vezes a cama, e a roda da minha imaginação. Sem ela era como se, chegada ao destino, não falasse com os nativos. E eu não gosto desses turistas.
Hei-de mandar-vos uns postais.