Mostrar mensagens com a etiqueta Amélie Nothomb. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Amélie Nothomb. Mostrar todas as mensagens

15.4.05

Leituras II

A padeira de Aljubarrota e o Francis dos Churrascos mandaram-me um questionário. Pensei que fosse para conhecerem os meus hábitos alimentares, mas afinal é para saberem o que ando a ler! Será que vamos passar a ter menus de livros para acompanhar refeições?
A ideia até que não é má...

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Metafísica dos Tubos de Amélie Nothomb, para viver eternamente na infância e acreditar que tudo é possível, até ser um deus.

Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?
É um prazer ler um livro e entrar dentro de um personagem. Felizmente aconteceu muitas vezes, dura o tempo da leitura e às vezes um pouco mais.

Qual foi o último livro que compraste?
Não sei, compro livros quase por impulso (que se vão acumulando até os poder ler). Dos últimos: Londres e Companhia, de Luís Amorim de Sousa (dica do Jorge da livraria O Navio de Espelhos), Viagem por um Século de Literatura Portuguesa do Nuno Júdice (já li, reli e aconselho: é um livro pequenino em que se revisita um pouco dos grandes autores, desde a geração de 70 até aos nossos dias), A Cidade no Bolso de Mário Cláudio, Almas Cinzentas de Philippe Claudel (ainda não li os dois últimos).

Qual o último livro que leste?
Até há pouco tempo pegava num livro de cada vez, agora tenho sempre dois ou três (completamente diferentes) na cabeceira. Acabei Primeiras Histórias de João Guimarães Rosa (que o meu amigo Nuno me emprestou, é uma edição antiga da Ed. Nova Fronteira). Botafogo da Leonor Xavier foi o último livro que li-reli-re-reli (para a apresentação em Aveiro).

Que livros estás a ler?
Materna Doçura de Possidónio Cachapa (para devorar), Viagem ao Fim da Noite de Céline (para ir lendo devagar).

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Se fosse para uma estadia curta levava o que andasse a ler, mais alguns do "rol de livros que esperam há muito tempo". Se fosse para sempre, não sei mesmo..., preferia levar 5 amigos com quem passaria o tempo a contar e a escrever histórias. Mas Os Universos da Crítica do Eduardo Prado Coelho seria uma hipótese a considerar: nunca consegui acabar de o ler, é grosso (dá para almofada), é pesado (serve de arma), é denso (sempre útil para esquecer o isolamento) e teria certamente a sensação de aprender qualquer coisa nova todos os dias.

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
Vou passá-lo às meninas do baby lónia, Plasticina, Plan(o)Alto, Sol&Tude, Sentidos e Tou na Lua (sim, são mais que três, é a contar com as desistências) porque têm blogues muito bons que merecem ser visitadíssimos!

13.1.05

Chamaremos a Deus, o tubo

Serge Gainsbourg: "O Homem criou deus. O inverso ainda não foi provado"



E finalmente quem é este deus de que fala Amélie Nothomb na sua Metafísica dos Tubos? É a própria Amélie, em bébé.


"Os médicos diagnosticaram uma apatia patológica, sem se darem conta de que havia uma contradição nas palavras: A vossa filha é um legume. É muito preocupante." Neste livro, autobiográfico, Amélie descreve o estado em que permaneceu até aos dois anos. E "como explicar este nascimento dois anos após o parto? Nenhum médico virá a descobrir a chave do mistério. Foi como se tivessem sido necessários dois anos de vida extra-uterina para se tornar operacional." Depois desenvolve uma personalidade muito especial. A ama japonesa exercerá uma influência enorme sobre a criança Amélie, que começa a acreditar que é Deus. "Chegara finalmente o dia do meu terceiro aniversário.(...) Nishio-san foi perfeita: ajoelhou-se em frente da criança-deus que eu era e felicitou-me por essa proeza. Ela tinha razão: ter três anos não está ao alcance de qualquer um."


Amélie Nothomb é espantosa na descrição da sua infância (no Japão) e consegue fazer-nos compreender e mergulhar nas percepções e estratégias mentais de uma menina de dois/três anos. Com contextos narrativos e históricos completamente distintos, essa capacidade literária de situar o leitor no mundo imaginado (mas credível) da sua infância, já me fez ficar rendida a outros escritores - como Albert Camus, em O Primeiro Homem, ou Simone Beauvoir, em Memórias de uma Menina Bem Comportada.

E agora, porquê esta alusão a Serge Gainsboug? Pelas respostas que foram dadas à pergunta "quem imaginam que seja Deus?", a partir do primeiro capítulo da Metafísica dos Tubos. De alguma forma, o pensamento da maioria enquadra-se nesta frase de Gainsbourg.



O Contrabaixo é atribuido ao Bhixma, que deu a resposta mais correcta (bébé). A menção honrosa vai para o Abulafia que cita John Lennon: "Deus é um conceito através do qual medimos a nossa dor".

11.1.05

Temor e Tremor


Amélie Nothomb


No início dos anos 90, a belga Amélie-san é contratada pela Yumimoto, uma grande empresa japonesa. Ela vai então descobrir o implacável rigor das hierarquias e o sentido de autoridade da organização japonesa. Depara-se com códigos de comportamento que lhe parecem indecifráveis. Domina a língua japonesa mas não deve revelá-lo para que a empresa não perca a confiança dos seus clientes. A sua superiora hierárquica directa é Mori Fubuki, pelo que não deve falar com o senhor Tenchi, mesmo que este tenha um projecto em que ela pode ser útil. E não esquecer que o superior hierárquico de Fabuki é o Senhor Saito, e o deste, o Senhor Omochi, e o deste o Senhor Heneda,...
Dia após dia, vai somando erros, faltas e fracassos e, como num pesadelo, vai descendo degraus na hierarquia. Até chegar ao nível de supervisora de casas de banho, a derradeira humilhação.
Absurdo, cómico, angustiante, este romance ou esta sátira valeu a Amélie Nothomb o Grande Prémio do Romance da Academia Francesa em 1999. O livro já foi adaptado ao cinema por Alain Corneau.
Em Portugal o livro foi editado pela Bizâncio.


- Mademoiselle Mori?
- Chame-me Fubuki.
Eu já não ouvia o que ela me dizia. Mademoiselle Mori media pelo menos um metro e oitenta, altura que poucos homens japoneses atingem. Ela era esbelta e graciosa, arrebatadora mesmo, apesar da dureza japonesa a que tinha de sacrificar essa beleza. Mas o que me petrificava era o esplendor do seu rosto. (pp 13, traduzido do original da Albin Michel)
Gritam-me em cima. Abro os olhos e vejo detritos. Volto a fechá-los.
Volto a cair no abismo.
Ouço a voz meiga de Fubuki:
- Eu conheço-a bem. Ela cobriu-se de lixo para não ousarmos sacudi-la. Ela tornou-se intocável. É assim o seu feitio. Não tem nenhuma dignidade! ( pp 85-86, idem)

10.1.05

A Cosmética do Inimigo


Amélie Nothomb

A 24 de Março de 1999, os passageiros que aguardavam a partida do voo para Barcelona assistiram a um espectáculo inacreditável. Quando o avião já estava com três horas de atraso não explicado, um dos passageiros levantou-se do lugar onde estava sentado e começou a bater com a cabeça contra uma das paredes da sala, uma vez e outra. Movia-o uma violência tão espantosa que ninguém ousou intervir. E continuou até morrer.
As testemunhas daquele suicídio inqualificável foram unânimes quanto a um pormenor. De cada vez que batia com a cabeça contra a parede, o homem acompanhava aquele gesto com um grito. E aquilo que ele gritava era:
- Livre! Livre! Livre!


Esta notícia, lida num jornal, levou Amélie Nothomb a escrever um livro. Sobre a história que ela nos conta nada direi, mas de página em página, até ao surpreendente final, acompanhamos os pensamentos de um homem, Angust, que se sente perseguido. O livro chama-se A Cosmética do Inimigo e está editado pela Bizâncio. Amélie Nothomb é belga mas nasceu no Japão (1967). A sua ligação ao país do sol nascente é uma marca incontornável na sua obra (pelo menos na Metafísica dos Tubos e em Temor e Tremor, livros que já li). Mas este livro é diferente. Este livro revela apenas, mais uma vez, a sua capacidade de pegar numa visão particular, de assumir um universo singular, e construir todo um mundo a partir daí.


O post anterior é já uma homenagem a esta escritora. Lembro-me de começar a ler a Metafísica dos Tubos e de sentir uma enorme vontade de partilhar esse livro com toda a gente. Li tantas vezes aquele primeiro capítulo (em francês parece-me ainda mais poético) que quase o fixei por inteiro, poderia declamá-lo! A passagem para o segundo capítulo foi outra revelação. Espero convencer-vos a espreitar esta autora, em Portugal ela ainda é pouco conhecida. No post seguinte, voltarei a ela. Por agora, releiam o fabuloso início da Metafísica dos Tubos e digam-me quem imaginam que seja Deus!

9.1.05

Metafísica dos Tubos


Amélie Nothomb

No princípio não havia nada. E este nada não era vazio nem vago: ele não apelava a nada a não ser a ele próprio. E Deus viu que isso era bom. Por nada deste mundo ele teria criado o que quer que fosse. Mais do que convir-lhe, o nada preenchia-o.
Deus tinha os olhos perpetuamente abertos e fixos. Se eles estivessem fechados, não teria mudado grande coisa. Não havia nada para ver e Deus não olhava para nada. Ele era cheio e denso como um ovo duro, e também tinha a redondeza e a imobilidade deste.
Deus era a absoluta satisfação. Ele não queria nada, não percebia nada, não recusava nada e não se interessava por nada. A vida era de tal forma esta plenitude, que não era vida. Deus não vivia, existia.
A sua existência não teve para ele um começo perceptível. Alguns grandes livros têm primeiras frases tão pouco turbulentas que as esquecemos logo e que nos dão a impressão de que estamos instalados nessa leitura desde a alvorada dos tempos. Da mesma maneira, era impossível saber o momento a partir do qual Deus tinha começado a existir. Era como se ele sempre tivesse existido. Deus não tinha linguagem e portanto ele não tinha pensamento. Ele era saciedade e eternidade. E tudo isto provava, ao mais alto nível, que Deus era Deus. E esta evidência não tinha nenhuma importância, porque Deus estava-se nas tintas de ser Deus.


Os olhos dos seres vivos possuem a mais espantosa das propriedades: o olhar. Não há nada mais singular. Não dizemos dos ouvidos das criaturas que eles têm um ouvidar, nem das suas narinas que elas têm um narinar.
O que é um olhar? É inexprimível. Nenhuma palavra se aproxima da sua essência estranha. E no entanto, o olhar existe. São mesmo poucas as realidades que existem tanto assim.
Qual é a diferença entre os olhos que têm um olhar e os olhos que não o têm? Esta diferença tem um nome: é a vida. A vida começa ali, onde começa o olhar.
Deus não tinha olhar.


As únicas ocupações de Deus eram a deglutição, a digestão e, consequência directa, a excreção. Estas actividades vegetativas passavam pelo corpo de Deus sem que ele se apercebesse delas. A alimentação, sempre a mesma, não era suficientemente excitante para que ele reparasse nela. O estatuto da bebida não era diferente. Deus abria os orifícios necessários para que os alimentos sólidos e líquidos o atravessassem.
É por isso que, neste estado do seu desenvolvimento, nós chamaremos a Deus, o tubo.
Há uma metafísica dos tubos.

Depois de lerem este fragmento (primeiro capítulo de um livro), quem imaginam que seja Deus? O Contrabaixo será atribuído à primeira resposta correcta. Há menções honrosas para as melhores aproximações.