11.3.10

Larilalá


Pra começar a contar

O meu nome é Larissa Latif Plácido Saré. Eu sou uma criatura cuja existência tornou-se possível graças às migrações. Avós migrantes de pai e mãe, pais migrantes, eu mesma, por mais de uma vez e agora, neste momento, migrante. Nasci em Belém do Pará, Brasil, um país de tantos percursos, tantas cartografias de chegadas e partidas. Vim a Portugal estudar festas populares. Festas católicas em homenagem a Maria, Meryan, uma mulher judia, nascida na Palestina que segundo a tradição cristã deu à luz o filho de Deus, Jesus, em Belém de Judá por uma circunstância histórica. O menino Jesus nasce migrante, como migrantes nasceram tantos meninos e meninas judeus e árabes numa região em que caminhar com as areias é o destino de tantos homens e tantas mulheres hoje como há dois mil anos.
Karine Jansen me pede para contar a história da minha família. Disponho-me a começar a narrativa e percebo que sei muito pouco. Um avô, Abdul’Latif Mohamed Saré, a quem devo o nome que assino com orgulho, como uma prova dessa identidade fugidia que me constitui: mestiçagem, migração, hibridação. Sujeito pós-moderno? Ou apenas mais uma mulher filha de tantos caminhos trilhados pelos ancestrais, caminhos de terra, caminhos de vento e de mar. Uma Latifa. Mais uma. Quantas haverá hoje espalhadas pelo mundo? Os árabes estão em toda parte.
Meu avô foi o meu ancestral mais próximo nascido no Líbano. Seu filho Ahmed, meu pai, me repetiu a história de sua vinda para as Américas durante toda a minha infância. Meu avô libanês, que não conheci, é um dos heróis recorrentes na formação de minha sensibilidade estética, histórica, geográfica, cultural, política. Ao escolher assinar Latif, longe de qualquer desprezo pelo Saré que identifica minha família, escolhi fortalecer um laço com meu ancestral naquilo que faz de mim ser o que sou, uma artista, uma narradora, uma viajante. O nome Larissa Latif para mim significa “Larissa, filha de Ahmed, neta de Abdul’Latif, o imigrante, o viajante, o narrador, o pai de Ahmed, o narrador, o viajante, o comunista, meu pai”.
O que sei de meu avô? Que nasceu em Hadara, um povoado montanhês no Líbano, na região de Trípoli, que perdeu o pai aos quatro anos de idade, vítima de hidrofobia depois de uma mordida de cachorro, que era um camponês pobre e tinha uma irmã chamada Nazira. Não lembro os nomes de meus bisavós. Aos dezoito anos, Abdul’Latif deixou sua aldeia, desceu até o porto de Trípoli e embarcou num navio para Marselha. Deixou sua mãe e sua irmã para não ser obrigado a alistar-se nas tropas turco-otomanas que ocupavam seu país. Sim, meu avô foi também fugitivo de um regime, como mais tarde seu filho Ahmed o seria. Deles penso que herdei essa sensação de estar em eterno sobreaviso, pronta para pular dentro ou fora de um trem a qualquer momento, em qualquer lugar, uma espécie de desconforto essencial, como se um gene andarilho e a necessidade de partir estivessem impressos em mim tal qual os traços que anunciam a qualquer um que vê meu rosto: Brasileiramente Árabe.



No dia 17 de Abril, em Aveiro, «Larilalá». Larissa Latif dando vida ao silêncio.

2 comentários:

Fatyly disse...

Como correu? gostaste?...deve ter sido maravilhoso...

Rogério Viana disse...

Queridas Maria do Rosário e Larissa Latif.

Procurava referências, comentários, sobre Jean-Didier Vincent, autor de "A Carne e o Diabo". Chegou até mim, no ano passado, um exemplar, publicado em Portugal, em fevereiro de 1997, pela Publicações Europa-América, com o selo "Fórum da Ciência", tradução de Maria Luzia Machado.
Procura por Vicent e seu provocativo estudo sobre o nascimento do Bem e do Mal. E o que eu não procurava acabei encontrando no blog de Maria do Rosário e no pequeno depoimento de minha conterrânea brasileira, a paraense Larissa Latif Plácido Saré. Tudo graças aos poderes do "titio Google".
Sou jornalista, com 35 anos de experiência editorial, tenho 61 anos e moro em Curitiba, Estado do Paraná, no sul do Brasil. Depois de abandonar as palavras de reportagens, entrevistas, editoriais,comentários, a palavra do noticiário, passei a estudar e a buscar temas para contos, poesias, roteiros de cinema e, desde 2003, passei a estudar e pesquisar dramaturgia. Há seis anos, aqui em Curitiba, comecei a me dedicar mais exclusivamente à escrita dramatúrgica. E por essa razão foi que encontrei-as. Pela minha curiosidade e, sobretudo, pela minha sorte.
Gostei muito de ler o pequeno relato da mulher brasileira fruto da mistura de genes árabes e brasileiros, com certeza muito portugueses também que agora está em Portugal estudando festas populares.Fiquei imaginando aqui com meus botões - e as teclas do meu computador, claro - que enredo interessante não daria a pequena história familiar nos contada por Larissa Latif. E por esse motivo estou escrevendo a vocês. Desejo trocar informações sobre o trabalho das duas - Maria do Rosário e Larissa Latif.
Visitem meu blog de Estudos de Dramaturgia Paraná:
http://estudosdedramaturgia-parana.blogspot.com/
e troquem, comigo, informações por e-mail
rogeriobviana@hotmail.com