Obra: [Contos de] Princípio, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO,
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «NATUREZA-INSTINTO VERSUS CONDICIONAMENTO SOCIAL (sociabilidades, papéis/status quo, crenças e valores dominantes)»
«LOUCURA»
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre «marido e mulher» e «amante e amante». No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos «crescei e multiplicai-vos!» Os esposos dignos (...) devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros... O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar bocas, os seios, os corpos todos... É a liberdade na paixão, e como é liberdade, grangeou o ódio da «gente honesta»...
Tudo isto é absurdo... tudo isto é verdadeiro.
(...)
É por isso que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso mesmo que o marido tem amantes... que a sua mulher lhe segue muitas vezes o exemplo...
p. 30
A cândida-donzela a quem a mamã recomendou que obedecesse às exigências do marido, por mais estranhas que elas lhe parecessem, embora já as conheça muito bem na maior parte das vezes (...)
«E o marido? Esse aparece também algo atrapalhadote, sem saber por onde principiar, não vá a pobrezinha assarapantar-se com a insólita coisa – ela, que está morta por isso mesmo...
«Ah, meu caro, como são imbecis todas estas hipocrisias; frutos dos eternos preconceitos, da educação completamente errada duma espécie que se envergonha da sua mãe: a Natureza....
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhando de ser animais; possuíram-se encarando o acto como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens... Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos...
pp. 31-32
[Raul] Nunca lhe deixou usar espartilho.
p. 34
... casado face à igreja, como toda agente... Essa vulgaridade sobretudo é que me espantava.
p. 36
Loucura?! - Mas afinal o que vem a ser a loucura...
Um enigma... Por isso mesmo é o que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo... (...) Como estão em minoria... são doidos...
p. 37
Como se forma o indivíduo? Com o prazer... Fabricar vida é uma necessidade... deliciosa, viciosa portanto.
A natureza compreendeu que ninguém faria vida se não fosse por interesse... para gozar... faz-se a vida só por isso...
(...)
Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...
........
Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados.
(...)
Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que teria mais força do que o criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos;
pp. 70-71
«O SEXTO SENTIDO»
[Dr. Gouveia:] Ao homem falta apenas o orgão de recepção e percepção das ondas aéreas. Esse órgão é o «sexto sentido». Dele já deve existir um crepúsculo em todos os cérebros, mais desenvolvidos nalguns, o que explica os fenómenos provados de transmissão do pensamento. O homem que já vê, ouve, gosta, cheira e apalpa – muito brevemente sentirá».
p. 184
«O INCESTO»
A maior parte das pessoas faz um grande número de coisas que não gosta de fazer e que podia muito bem deixar de fazer. Mas fá-las porque toda a gente as faz.
p. 215
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «NATUREZA-INSTINTO VERSUS CONDICIONAMENTO SOCIAL (sociabilidades, papéis/status quo, crenças e valores dominantes)»
«LOUCURA»
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre «marido e mulher» e «amante e amante». No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos «crescei e multiplicai-vos!» Os esposos dignos (...) devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros... O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar bocas, os seios, os corpos todos... É a liberdade na paixão, e como é liberdade, grangeou o ódio da «gente honesta»...
Tudo isto é absurdo... tudo isto é verdadeiro.
(...)
É por isso que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso mesmo que o marido tem amantes... que a sua mulher lhe segue muitas vezes o exemplo...
p. 30
A cândida-donzela a quem a mamã recomendou que obedecesse às exigências do marido, por mais estranhas que elas lhe parecessem, embora já as conheça muito bem na maior parte das vezes (...)
«E o marido? Esse aparece também algo atrapalhadote, sem saber por onde principiar, não vá a pobrezinha assarapantar-se com a insólita coisa – ela, que está morta por isso mesmo...
«Ah, meu caro, como são imbecis todas estas hipocrisias; frutos dos eternos preconceitos, da educação completamente errada duma espécie que se envergonha da sua mãe: a Natureza....
Bem diferente tinha sido a noite de noivos de Marcela e Raul. Espíritos desprendidos, francos e livres, não se envergonhando de ser animais; possuíram-se encarando o acto como o mais natural, o mais humano, visto que é ele que fabrica a vida, que fabrica os homens... Possuíram-se como amantes, não se possuíram como esposos...
pp. 31-32
[Raul] Nunca lhe deixou usar espartilho.
p. 34
... casado face à igreja, como toda agente... Essa vulgaridade sobretudo é que me espantava.
p. 36
Loucura?! - Mas afinal o que vem a ser a loucura...
Um enigma... Por isso mesmo é o que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria. A vida é uma convenção: isto é vermelho, aquilo é branco, unicamente porque se determinou chamar à cor disto vermelho e à cor daquilo branco. A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções: É a gente de juízo... (...) Como estão em minoria... são doidos...
p. 37
Como se forma o indivíduo? Com o prazer... Fabricar vida é uma necessidade... deliciosa, viciosa portanto.
A natureza compreendeu que ninguém faria vida se não fosse por interesse... para gozar... faz-se a vida só por isso...
(...)
Eu vivo. Nunca fiz vida. Fui mais sensato, gozei apenas...
........
Procriar é uma malvadez: é fazer desgraçados.
(...)
Se a humanidade fosse inteligente, se porfiasse, acabaria com os homens. Ventura suprema! Suprema superioridade! Demonstraria que teria mais força do que o criador: destruiria a sua obra infame.
Mas ninguém quer domar os sentidos;
pp. 70-71
«O SEXTO SENTIDO»
[Dr. Gouveia:] Ao homem falta apenas o orgão de recepção e percepção das ondas aéreas. Esse órgão é o «sexto sentido». Dele já deve existir um crepúsculo em todos os cérebros, mais desenvolvidos nalguns, o que explica os fenómenos provados de transmissão do pensamento. O homem que já vê, ouve, gosta, cheira e apalpa – muito brevemente sentirá».
p. 184
«O INCESTO»
A maior parte das pessoas faz um grande número de coisas que não gosta de fazer e que podia muito bem deixar de fazer. Mas fá-las porque toda a gente as faz.
p. 215
[Imagem: Pedro Oliveira, Óleo e acrílico sobre tela, 2008]
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