25.7.05

Já sonho com Ngorongoro XVIII



Continuo em Port Said mas desta vez, não! Não sou capaz. Só te digo que o cruzeiro pelo Canal do Suez, inaugurado há já 136 anos, continua a ser uma experiência magnífica. E o que me leva a recusar o teu pedido? Respondo-te com outra pergunta: já leste Eça de Queirós? Eu sei que sim e por isso vais compreender que prefira deixar-te, em vez dos meus relatos apressados, estas crónicas do Diário de Notícias de Janeiro de 1870, escritas pelo nosso querido Eça. Começa assim:

Sr. Redactor.
Acedo da mais perfeita vontade ao seu desejo de ter a história real das festas de Suez. Conto-lhe, porém, simplesmente e descarnadamente, o que me ficou na memória daqueles dias confusos e cheios de factos: tanto mais que as festas de Suez estão para mim entre duas recordações - o Cairo e Jerusalém: estão abafadas, escurecidas por estas duas luminosas e poderosas impressões: estão como pode estar um desenho linear a lápis, entre uma tela resplandecente de Decamps, o pintor do Alcorão, e uma tela mortuária de Delaroche, o pintor do Evangelho.

E depois, assim:
Tínhamos voltado, eu e o meu companheiro, o conde de Resende, de uma excursão às pirâmides de Gizé, aos templos de Sakkarah e às ruínas de Mênfis, quando no Cairo soubemos que estavam na baía de Alexandria os navios do quediva que deviam levar-nos a Port Said e Suez.
(...)
...naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos urras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspecto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yachts dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a «Aigle», com a imperatriz, o «Mamoudeb» com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José, até ao caide árabe Abd el-Kader.

Bem, talvez seja melhor leres tu mas guarda bem estas crónicas!

Port Said tem uma história atribulada. Entre 1956 e 1967, a cidade foi afectada pelo conflito árabe-israelita e chegou a ser evacuada. Só depois da guerra de Outubro de 73, quando o Egipto recuperou a maior parte dos seus territórios ocupados por Israel, é que a cidade se tornou segura e os seus habitantes puderam regressar e iniciar a reconstrução. Desde os acordos de paz estabelecidos em 1979 a cidade desenvolveu-se, sendo hoje a quarta maior cidade egípcia e o segundo porto mais importante do país, depois de Alexandria. No Museu Militar podemos encontrar algumas trágicas relíquias das guerras de 56, 67 e 73. Mas sabes, a cidade ainda guarda vestígios da traça arquitectónica dos finais do século XIX. Se pudesses ver a minha varanda alta com este balcão de madeira! É claro que tinha que me lembrar do Eça!


Port Said
Mohammed El-Bakkar

3 comentários:

Ilidio Soares disse...

Eita, Rosário! Só mesmo você pra reunir tantas construções, polifonias e ressurreições sem o mofo dos sarcófagos. Pelo contrário, tudo aqui são resinas aromáticas que você maneja com absoluta perícia e sentimentalidade. Adoro.
beijos
Ilidio

Barbed Wire disse...

A autora deste bolg já dorme e sonha há dias...

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Eita Ilidio, fiquei sem palavras, sem voz, eu sei lá! :)
Muito obrigada e um abração

barbed wire, mas é que ando mesmo meia adormecida ;)