20.6.05

Avenidas de Merda


MRF

Schmetterling Triste em Voos Espaçados é um filme sobre um poema do livro Numa Avenida de Merda. Se quiseres ter um exemplar em casa da edição doméstica em DVD deste filme, segue os seguintes passos:
1) Escreve um texto (prosa ou poesia) sobre avenidas de merda, em português.

2) Lança-o no teu blog e dedica-o ao Ivar Corceiro ou vai até ao Bagaço Amarelo e lê as instruções certinhas até ao fim. A verdade é que todos temos uma Avenida de Merda preferida, e a minha, imaginária, é esta:


Outra Avenida de Merda

Não foi tanto o facto de ele estar completamente bêbado, mesmo sóbrio teria aquele ar miserável e rasgado. Mas arrotou quando estava já bem próximo de mim e disse foda-se de desprezo. E depois começou a cuspir repetidamente sois todos uns cabrões sois todos uns cabrões. É claro que me afastei e acho que ainda me lembro daquela impressão de sentir o nariz torcer. Incómodo. Que grande incómodo. Isto dantes não era assim.

E logo à frente, novamente essa vontade de parar de inalar e de cegar. Aquilo é uma ferida com gangrena ou outra merda qualquer. A velha está sentada e geme um dai-me qualquer coisinha. Num relance os olhares cruzam-se. Sente dor, exala dor. Perturba-me essa dor dos olhos. Azuis. Ela foi bonita. Está um calor insuportável. Bebia qualquer coisa.

Atravesso a praça até à banca das gasosas. E então vem outra. Aquela ali é a minha filha, tem o ciclo mas não quer trabalhar. E insiste, persegue-me. Lá em casa não há nada, acabou o gás. Páro e fixo a mulher. Tome lá, mas deixe-me em paz. A filha está sentada num banco, vira e revira um pacote amarrotado de SG Gigante e farta-se de rir sozinha.
- Ela é doente? - Doente sou eu, ela é uma desgraçada, quando rouba é pra cigarros. A doida começa a baloiçar-se e ri mais alto. Fujo dali com a garrafa de água na mão. Novamente na Avenida, tento acender um cigarro. É o saco, é a garrafa que, merda, já está vazia, e este calor. Vou fumar para quê? Mas acendo o cigarro.

Depois da praça a Avenida era bonita, lembro-me de acácias amarelas, do Mercado Municipal, de cores garridas contrastando com gente vagarosa. É quando reencontro o Mercado que percebo que a cidade da minha Avenida morreu. As paredes cinzentas estão lá mas deste lado da rua quase oiço um eco. Do interior do edifício vazio o breu espreita, se estendesse as mãos conseguiria tocar-lhe. Um silêncio enorme numa Avenida agora movimentada, buzinada, atropelada.

Pego na máquina, que se lixe, sou turista. Vou fixar a decadência. E então reparo neles. Velhos secadores de cabelo à varanda. A minha Avenida de Merda tem um oásis surreal. E, esquecendo a sujidade no solo, consigo vê-las, bonitas, sorridentes, a fazer a mise enquanto bronzeiam as pernas compridas, cruzadas, fechadas.

Desperto com um roçagar de chinelas. A mão de um miúdo que chora toca-me ao de leve. A mãe continua o andar rapidinho, subindo a avenida, enquanto o baloiça para cima e para baixo.

[Foto: Mercado Municipal do Mindelo, Cabo Verde]

2 comentários:

mfc disse...

Esse é bem o quotidiano de merda que encontramos nas nossas cidades, seja em Avenidas de Merda ou noutras aparentadas!

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Pois é, mfc, pois é... mas às vezes, felizmente, vemos umas coisas bonitas! um abraço