30.10.08

À escuta #78

A - Oh mamã, precisas de mais «espertalidade»!
- «Espertalidade»?
A- Sim, tens que ser mais esperta.
- Mas essa palavra não existe.
A - Existe, existe!
- Vamos ver no dicionário... Olha, não existe.
A - Se não existe, devia existir. «Espertalidade» é ser mais esperto. Como ser burro é ter muita «burrança».

29.10.08

Under constrution

Under constrution, de Zhenchen Liu, foi o documentário vencedor do Cine'Eco 2008.



[Conheça todos os outros filmes premiados]

Suze (6)

Dante Gabriel Rossetti
Sancta Lilias


Ah! Mas como ela ficava, a minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante, o seu imenso tédio neurasténico, querendo desertar de si, da sua alma e da sua pele enojada, para sempre!...
E caída num estofo, amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia.
Uma manhã, em Lisboa, acabávamos de almoçar no nosso quarto, com a janela prà Avenida.
Ela fumava Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembrança súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei:
- Tu sabes: não gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é pra dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga. Começo por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles vêm e eu penso que vou morrer de nojo. Vem um, vêm muitos... vêm todos. Então, não sei porquê, sinto um bem-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem; parece-me que nasci pra isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo...
Depois, num riso seco:
- Sinto a volúpia de um cristão às feras...
Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu:
- Que importa isto! É um detalhe...
As outras, as vulgares, bestializavam-se; passada a crise horrível de adaptação, vendiam beijos, como um merceeiro vende arroz, um advogado eloquência, ou um diplomata uma colónia. A Suze, não; era escultada em lava: era alguém.
Prostituta ou esposa, seria sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre só. Pobre Suze!
Alma apolínea, foi esbofeteada por fadistas que têm o nome em crónicas heróicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vómito; e com uma clarividência trágida pressentiu muita vez os haustos da manhã subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara boçal de algum cliente.
Teve amantes ricos, equipagens, e as suas melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de Inverno, como uma confidência, o crepitar da lenha num fogão...
Teve paixões sensuais que a torturavam, foi roubada impunemente muitas vezes, e uma noite em Moscovo - caía neve - velando uma companheira moribunda, sem nada pra empenhar e sem recursos, foi pôr no prego - jóia grotesquíssima! - a própria dentadura da doente que, Deus louvado, era montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite.
É de estoirar a rir - não lhes parece?...
Sabia de cor toda a Comédia humana: viveu toda a comédia humana. Pobre Suze!

Tu, ao menos, não precisaste de ser louca para seres santa: ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa; e através de insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!
(...)
Tu, Suze, sabias bem toda a piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum príncipe Nekhuladoff tentasse redimir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele que te falava de perdão e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justiça, pois bem sabias que é inútil tê-la pra morrer à sede...
-continua-
[fragmentos anteriores]


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

27.10.08

Mal du Depart

Always the perfect, unworthy lover
of the endless voyage and azure ocean,
I shall die one evening, like any other,
without having crossed the dim horizon.

For Madras, Singapore, Algeria, Sfax,
the proud ships will still be setting sail,
but I shall bend over a chart-covered desk
and look in the ledger, and make out a bill.

I'll give up talking about long journeys,
My friends will think I've forgotten at last;
my mother will be delighted: she'll say
"A young man's fancy, but now it's passed."

But one night my soul will rise up before me,
and ask, like some grim executioner, "Why?"
This unworthy trembling hand will take arms
and fearlessly strike where the blame must lie.

And I, who longed to be buried one day
in some deep sea of the distant Indies
shall come to a dull and common death;
shall go to a grave like the graves of so many.


Nikos Kavvadias

26.10.08

O silêncio em «Ferro 3»


O silêncio de Tae—suk
Tae-suk é a personificação do homem e isolado pelo que a sua linguagem é, antes de mais, interior. Adivinhamos monólogos, diálogos interiores, quando o observamos sozinho na sua ocupação quotidiana de invasão gentil de casas, vazias de gente mas habitadas, a ficcionar quotidianos e relações que não lhe pertencem. Tae-suk, no seu silêncio, cria «ligações improváveis». Na linha de pensamento de Rimbaud, e se o gesto for uma forma de escrita, este seu silêncio é profundamente poético.
Para o existencialista Maurice Merleau-Ponty, «esta vida interior é uma linguagem interior». Tae-suk vive na antecâmara da fala. O seu silêncio expressa-se pois, ainda, através dessa afonia, da incapacidade ou recusa voluntária do uso da palavra, que é razão e consequência da ausência de relações de sociabilidade na sua vida. Rejeitando a sociabilidade, a personagem recusa a fusão: com o outro, com a sociedade. O silêncio inicial de Tae-suk é o do sujeito que preserva a «descontinuidade» no devir.
Ocupar casas de desconhecidos é a sua forma peculiar de ligação ao mundo, uma forma que o protege das pessoas reais que ele sabe que são sempre diferentes das suas imagens. Contudo, há sinais de aspiração à partilha, à contaminação: as fotografias que vai tirando, a empatia no luto, e, obviamente, o desejo de salvação da frágil esposa maltratada, Sun-hwa.
O silêncio de Tae-suk é preenchido por olhares e gestos expressivos. É uma expressividade intensa mas que deixa espaço à ambiguidade e ao mistério, pelo que o espectador é levado a agarrar cada olhar, a observar o mínimo gesto, para apreender a personagem.
Mas da mesma forma que, na retórica, uma palavra ou uma frase se pode tornar redundante, até ao encontro com Sun-hwa, o silêncio de Tae-suk é tautológico: é um sistema fechado, anda à volta de si mesmo.
Quando Sun-hwa entra na vida de Tae-suk, a narrativa evolui: o enfoque é colocado na comunicação muda e plena de significação entre dois seres. Ambos passam a assumir um novo papel: são emissores-receptores, portadores de um código quase exclusivo. O desafio para o espectador aumenta. O silêncio reafirma a exigência de atenção, para perceber a parte, a soma ou a subtracção das partes, o significado do todo.
O silêncio dos amantes vive de coreografias, da geografia dos corpos, vive de frases gestuais repetitivas, miméticas, paralelas, sobrepostas, coincidentes (a distribuição dos folhetos, a lavagem da roupa à mão, o cuidado obsessivo posto no arranjo das casas que ocupam, o choro e o consolo mútuo, a surpresa, o temor...). Vive de movimentos suaves (o deslizar do ferro sobre as páginas molhadas, os passos lentos de pés descalços).
Os palcos (informais) destas coreografias são sempre espaços ordenados. O silêncio rejeita o caos.
Na prisão, a encenação do swing com a bola imaginária marca uma viragem. Tae-suk vai silenciar-se até à imaterialidade. Há a metáfora da sombra, como uma réstia de existência, que ele acaba por fazer desaparecer. Será a sua saída/libertação da prisão uma metáfora? Poderá a morte da personagem ter ocorrido nesse momento, que coincide com o desaparecimento da visibilidade do corpo? Nos últimos momentos do filme, Tae-suk é um fantasma que apenas Sun-hwa pode ver. É a visão ou a ficção exclusiva de Sun-hwa. Porém, todos pressentem a sua presença – quiça uma metáfora à impossibilidade do silêncio.

O silêncio de Sun-hwa
Começa por ser um silêncio imposto, um silêncio-mordaça, ao lado do marido.
É também um silêncio que evoca nostalgia (do passado, quando era bela e intocável: a fotografia na moldura evoca uma diva; e a sua nudez na fotografia remete para uma liberdade perdida, o seu olhar frontal representando confiança no futuro; a pose, serenidade).
É um silêncio de contenção de angústia, mesmo no início da relação com Tae-suk (depois, o choro que se solta).
Quando a relação com o amante se desenvolve, o silêncio de Sun-hwa é cúmplice e mimético.
De volta ao marido, o sujeito que impõe o silêncio é ela: o silêncio afirma-se como forma de rejeição do marido e de fidelidade ao amante. É um silêncio de espera, longo e pesado como o tempo que a separa do reencontro com o amante. E é também um silêncio ensandecente, de quem se transfigura em alma ou coração e perde o pé da realidade.

Como cantou Miguel Unamuno:
Recuerda, pues, o sueña tú, alma mia
la fantasia es tu sustancia eterna
lo que no fué;
com tus figuraciones hazte fuerte,
que eso es vivir, y lo demás es muerte


Em Ferro 3, as imagens ditam a forma como decorre a narrativa. Ao espectador é deixada a liberdade de estabelecer o sentido metafórico que essas imagens representam.
Privilegia-se a estética visual em detrimento dos diálogos. Ensaia-se uma linguagem do ícone: por exemplo, através da fotografia omnipresente de Sun-hwa e as transformações que vão ocorrendo nessa representação da personagem. Faz-se também intervir outra linguagem, a musical: o som de Natasha Atlas como metáfora da fusão entre os dois amantes. O silêncio apela ao desejo de uma escuta incessante do murmurar do mundo. Assim, para além da banda sonora do filme, todos os sons (sobre)comunicam sentido: todos os sons dos movimentos corporais, do espaço envolvente, são amplificados.

Ki-duk oferece o prazer de pensar a imagem. O silêncio adquire um valor infinito.
Não penso que exista a intenção de uma «catarse do silêncio» (no sentido de Kierkegaard). Não me parece que a intenção filosófica do realizador seja a de restaurar o valor da palavra num mundo onde a comunicação, de tão profusa, gerou indiferença à mensagem. Quando Sun-hwa diz «amo-te», num simulacro de acto dirigido ao marido - e esta é a única vez que verbaliza algo, o sentido da «palavra» é posto em causa, é desvalorizado, face à certitude do silêncio significante e cúmplice. Para não falar da ineficácia da palavra, quando é usada como instrumento ou arma de conquista do ser (marido) ou da verdade (polícias). Porém, há uma mensagem clara: a ineficácia na comunicação conduz à violência.

Na Coreia do Sul, país de origem de Kim Ki-duk, a população é maioritariamente budista. Afirmava Georges Steiner em The Retreat from the word que, segundo algumas filosofias orientais, budistas e taoístas, alcançar o acto contemplativo mais elevado e puro supõe abandonar a linguagem, as mentiras inefáveis que existem por trás das fronteiras da palavra. A verdade não precisa das impurezas e da fragmentação inerentes ao discurso

Os dois amantes, que nunca fazem o uso da palavra, opõem-se assim à materialidade – da linguagem, do ser. Mas também se opõem ao materialismo: são seres desprovidos de bens económicos; o seu capital é cultural («como pode um licenciado ser marginal?» - questiona o polícia).
Os dois amantes vivem sempre num universo silencioso de observação-contemplação do outro, de si mesmo através do outro, atingindo o mais elevado estádio de compreensão e felicidade. Afastados um do outro, são este verso de Manoel de Barros (in O Livro sobre o Nada): «Tem mais presença em mim o que me falta».
Com os dois amantes, duas categorias difusas, real e ficção, passam a um estado de osmose. Ferro 3 é assim uma grande, imensa, metáfora do amor.

____que provoca o espectador. Porque este filme nos mergulha, por si, num profundo exercício de contemplação. do silêncio.


22.10.08

O Fumo do Meu Cigarro

José Rodrigues
Sem título
Técnica mista s/ cartão - 24,5 x 31,5 cm


O Sol morre lá fora
num deslumbramento,
feérico e bizarro…
e o meu olhar vai seguindo
as espirais caprichosas,
e ondulantes,
do fumo do meu cigarro.

Aconchego mais
a seda esmaecida
que me envolve e não me aquece...
E penso em ti,
e na minha vida
tão partida
e tão diversa!...
Enquanto a fita, cinzenta e leve,
volteia,
se enlaça
e se dispersa!...

E o meu pensamento
vagueia
numa angústia que eu não venço,
oscilando-me
sobre um abismo de incertezas!. .
A noite desce,
desdobrando o seu véu pesado e denso...
E à minha boca cruel
e desdenhosa,
sobe, numa ironia estilizada,
o sabor amargo
e doloroso
duma longínqua posse realizada...
…………………………………………

Que tédio, Senhor, enrola a minha lembrança!
— Nada vem sobressaltar
os meus nervos quietos
e vencidos!
E o meu pensamento
vai seguindo,
obstinadamente,
a vida singular dos meus sentidos!
………………………………………….

Rondas de treva volteiam em redor.
Farta—me aquele ardor
moço e alucinado
que a minha lembrança acordou agora,
nesta sombra esguia
do passado...

Afoga-me a estranha insânia
dum louco desígnio - raro e torturante,..
E fico-me a cismar
na volúpia enfastiada
e nos tédios ruivos
desta hora desolada
e impenitente,
e ante o meu olhar
ensombrado e consciente,
ergueu-se, rácica e impiedosa,
a nostálgica, amorosa
Duquesa de Brabante!...
— essa orquídea altiva e rara
que, numa rebeldia
fidalga e sem remédio,
arrefecia
em horas de extermínio
as horas criminosas do seu tédio!

Judith Teixeira
1925

Judith Teixeira é a única mulher no modernismo português e um caso de safismo literário que a torna expoente de uma deriva original que é uma face autêntica de modernidade artística e de coragem expressional.

20.10.08

Suze #5

Dante Gabriel Rossetti
A Vision of Fiammetta, 1878


«Que horas são? Deve ser quase de madrugada.
Eu bem queria, nestas palavras de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco de método, monografá-la. Mas não posso, não posso.
Tenho aqui na minha mesa de trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho coragem pra escrever, como posso desviar os olhos da névoa abismal dos seus, que me transem de irremediável e me enlouquecem de desejo. Desejo absurdo, que o impossível hiperestesia, e me impregnou célula a célula.
Sinto no corpo todo a carícia opiada dos seus dedos, a sua carne sortílega, embruxada; a sua pele afim da minha, e que com ela dialogava em silêncio, nas horas de esgotamento, rememorando sensações agudas, fulgurantes,...
Vejo-a, vejo-a!
Passa a teoria das nossas noites (em que os seus tiques profissionais me constrangiam) e ela era sempre de uma envolvência fluida, de uma estesia de actriz inconsciente, uma viciosa triste, insaciada, e uma boa e pobre rapariga.
De começo podiam julgá-la artificial, tão estilizada era a sua graça, tanto o seu requinte parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidência. Mas não: viam-na mal. Ela era assim sem esforço, naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E todo o meu trabalho desta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira reconstruir uma obra-prima...
Muitas vezes já, aludi ao seu cinismo. Mas entendam-me: cinismo - disse-o o forçado genial de Reading - é a coragem de dizer as coisas como são e não como deviam ser. E a Suze era assim, quando falava a alguém que a compreendia.
Esses, porém, eram raros, muito raros. Com uma intuição divinatória, balzaquiana, a Suze adivinhava às primeiras palavras o seu caso, lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o dia era, conforme o macho em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar. (...)
Mais flexível que as nuvens são para o vento, o seu proteísmo teatral de prostituta mimava a cada um o seu ideal...»
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

A Vision of Fiammetta



Behold Fiammetta, shown in Vision here.
Gloom-girt 'mid Spring-flushed apple-growth she
stands;
And as she sways the branches with her hands,
Along her arm the sundered bloom falls sheer,
In separate petals shed, each like a tear;
While from the quivering bough the bird expands
His wings. And lo! thy spirit understands
Life shaken and shower'd and flown, and Death
drawn near.
All stirs with change. Her garments beat the air:
10 The angel circling round her aureole
Shimmers in flight against the tree's grey bole:
While she, with reassuring eyes most fair,
A presage and a promise stands; as 'twere
On Death's dark storm the rainbow of the Soul.