O silêncio de Tae—suk
Tae-suk é a personificação do homem só e isolado pelo que a sua linguagem é, antes de mais, interior. Adivinhamos monólogos, diálogos interiores, quando o observamos sozinho na sua ocupação quotidiana de invasão gentil de casas, vazias de gente mas habitadas, a ficcionar quotidianos e relações que não lhe pertencem. Tae-suk, no seu silêncio, cria «ligações improváveis». Na linha de pensamento de Rimbaud, e se o gesto for uma forma de escrita, este seu silêncio é profundamente poético.
Para o existencialista Maurice Merleau-Ponty, «esta vida interior é uma linguagem interior». Tae-suk vive na antecâmara da fala. O seu silêncio expressa-se pois, ainda, através dessa afonia, da incapacidade ou recusa voluntária do uso da palavra, que é razão e consequência da ausência de relações de sociabilidade na sua vida. Rejeitando a sociabilidade, a personagem recusa a fusão: com o outro, com a sociedade. O silêncio inicial de Tae-suk é o do sujeito que preserva a «descontinuidade» no devir.
Ocupar casas de desconhecidos é a sua forma peculiar de ligação ao mundo, uma forma que o protege das pessoas reais que ele sabe que são sempre diferentes das suas imagens. Contudo, há sinais de aspiração à partilha, à contaminação: as fotografias que vai tirando, a empatia no luto, e, obviamente, o desejo de salvação da frágil esposa maltratada, Sun-hwa.
O silêncio de Tae-suk é preenchido por olhares e gestos expressivos. É uma expressividade intensa mas que deixa espaço à ambiguidade e ao mistério, pelo que o espectador é levado a agarrar cada olhar, a observar o mínimo gesto, para apreender a personagem.
Mas da mesma forma que, na retórica, uma palavra ou uma frase se pode tornar redundante, até ao encontro com Sun-hwa, o silêncio de Tae-suk é tautológico: é um sistema fechado, anda à volta de si mesmo.
Quando Sun-hwa entra na vida de Tae-suk, a narrativa evolui: o enfoque é colocado na comunicação muda e plena de significação entre dois seres. Ambos passam a assumir um novo papel: são emissores-receptores, portadores de um código quase exclusivo. O desafio para o espectador aumenta. O silêncio reafirma a exigência de atenção, para perceber a parte, a soma ou a subtracção das partes, o significado do todo.
O silêncio dos amantes vive de coreografias, da geografia dos corpos, vive de frases gestuais repetitivas, miméticas, paralelas, sobrepostas, coincidentes (a distribuição dos folhetos, a lavagem da roupa à mão, o cuidado obsessivo posto no arranjo das casas que ocupam, o choro e o consolo mútuo, a surpresa, o temor...). Vive de movimentos suaves (o deslizar do ferro sobre as páginas molhadas, os passos lentos de pés descalços).
Os palcos (informais) destas coreografias são sempre espaços ordenados. O silêncio rejeita o caos.
Na prisão, a encenação do swing com a bola imaginária marca uma viragem. Tae-suk vai silenciar-se até à imaterialidade. Há a metáfora da sombra, como uma réstia de existência, que ele acaba por fazer desaparecer. Será a sua saída/libertação da prisão uma metáfora? Poderá a morte da personagem ter ocorrido nesse momento, que coincide com o desaparecimento da visibilidade do corpo? Nos últimos momentos do filme, Tae-suk é um fantasma que apenas Sun-hwa pode ver. É a visão ou a ficção exclusiva de Sun-hwa. Porém, todos pressentem a sua presença – quiça uma metáfora à impossibilidade do silêncio.
O silêncio de Sun-hwa
Começa por ser um silêncio imposto, um silêncio-mordaça, ao lado do marido.
É também um silêncio que evoca nostalgia (do passado, quando era bela e intocável: a fotografia na moldura evoca uma diva; e a sua nudez na fotografia remete para uma liberdade perdida, o seu olhar frontal representando confiança no futuro; a pose, serenidade).
É um silêncio de contenção de angústia, mesmo no início da relação com Tae-suk (depois, o choro que se solta).
Quando a relação com o amante se desenvolve, o silêncio de Sun-hwa é cúmplice e mimético.
De volta ao marido, o sujeito que impõe o silêncio é ela: o silêncio afirma-se como forma de rejeição do marido e de fidelidade ao amante. É um silêncio de espera, longo e pesado como o tempo que a separa do reencontro com o amante. E é também um silêncio ensandecente, de quem se transfigura em alma ou coração e perde o pé da realidade.
Como cantou Miguel Unamuno:
Recuerda, pues, o sueña tú, alma mia
la fantasia es tu sustancia eterna
lo que no fué;
com tus figuraciones hazte fuerte,
que eso es vivir, y lo demás es muerte
Em Ferro 3, as imagens ditam a forma como decorre a narrativa. Ao espectador é deixada a liberdade de estabelecer o sentido metafórico que essas imagens representam.
Privilegia-se a estética visual em detrimento dos diálogos. Ensaia-se uma linguagem do ícone: por exemplo, através da fotografia omnipresente de Sun-hwa e as transformações que vão ocorrendo nessa representação da personagem. Faz-se também intervir outra linguagem, a musical: o som de Natasha Atlas como metáfora da fusão entre os dois amantes. O silêncio apela ao desejo de uma escuta incessante do murmurar do mundo. Assim, para além da banda sonora do filme, todos os sons (sobre)comunicam sentido: todos os sons dos movimentos corporais, do espaço envolvente, são amplificados.
Ki-duk oferece o prazer de pensar a imagem. O silêncio adquire um valor infinito.
Não penso que exista a intenção de uma «catarse do silêncio» (no sentido de Kierkegaard). Não me parece que a intenção filosófica do realizador seja a de restaurar o valor da palavra num mundo onde a comunicação, de tão profusa, gerou indiferença à mensagem. Quando Sun-hwa diz «amo-te», num simulacro de acto dirigido ao marido - e esta é a única vez que verbaliza algo, o sentido da «palavra» é posto em causa, é desvalorizado, face à certitude do silêncio significante e cúmplice. Para não falar da ineficácia da palavra, quando é usada como instrumento ou arma de conquista do ser (marido) ou da verdade (polícias). Porém, há uma mensagem clara: a ineficácia na comunicação conduz à violência.
Na Coreia do Sul, país de origem de Kim Ki-duk, a população é maioritariamente budista. Afirmava Georges Steiner em The Retreat from the word que, segundo algumas filosofias orientais, budistas e taoístas, alcançar o acto contemplativo mais elevado e puro supõe abandonar a linguagem, as mentiras inefáveis que existem por trás das fronteiras da palavra. A verdade não precisa das impurezas e da fragmentação inerentes ao discurso
Os dois amantes, que nunca fazem o uso da palavra, opõem-se assim à materialidade – da linguagem, do ser. Mas também se opõem ao materialismo: são seres desprovidos de bens económicos; o seu capital é cultural («como pode um licenciado ser marginal?» - questiona o polícia).
Os dois amantes vivem sempre num universo silencioso de observação-contemplação do outro, de si mesmo através do outro, atingindo o mais elevado estádio de compreensão e felicidade. Afastados um do outro, são este verso de Manoel de Barros (in O Livro sobre o Nada): «Tem mais presença em mim o que me falta».
Com os dois amantes, duas categorias difusas, real e ficção, passam a um estado de osmose. Ferro 3 é assim uma grande, imensa, metáfora do amor.
____que provoca o espectador. Porque este filme nos mergulha, por si, num profundo exercício de contemplação. do silêncio.
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