20.10.08

Suze #5

Dante Gabriel Rossetti
A Vision of Fiammetta, 1878


«Que horas são? Deve ser quase de madrugada.
Eu bem queria, nestas palavras de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco de método, monografá-la. Mas não posso, não posso.
Tenho aqui na minha mesa de trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho coragem pra escrever, como posso desviar os olhos da névoa abismal dos seus, que me transem de irremediável e me enlouquecem de desejo. Desejo absurdo, que o impossível hiperestesia, e me impregnou célula a célula.
Sinto no corpo todo a carícia opiada dos seus dedos, a sua carne sortílega, embruxada; a sua pele afim da minha, e que com ela dialogava em silêncio, nas horas de esgotamento, rememorando sensações agudas, fulgurantes,...
Vejo-a, vejo-a!
Passa a teoria das nossas noites (em que os seus tiques profissionais me constrangiam) e ela era sempre de uma envolvência fluida, de uma estesia de actriz inconsciente, uma viciosa triste, insaciada, e uma boa e pobre rapariga.
De começo podiam julgá-la artificial, tão estilizada era a sua graça, tanto o seu requinte parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidência. Mas não: viam-na mal. Ela era assim sem esforço, naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E todo o meu trabalho desta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira reconstruir uma obra-prima...
Muitas vezes já, aludi ao seu cinismo. Mas entendam-me: cinismo - disse-o o forçado genial de Reading - é a coragem de dizer as coisas como são e não como deviam ser. E a Suze era assim, quando falava a alguém que a compreendia.
Esses, porém, eram raros, muito raros. Com uma intuição divinatória, balzaquiana, a Suze adivinhava às primeiras palavras o seu caso, lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o dia era, conforme o macho em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar. (...)
Mais flexível que as nuvens são para o vento, o seu proteísmo teatral de prostituta mimava a cada um o seu ideal...»
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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