29.9.08

Claro como água


«Por definição, o poder democrático terá de ser sempre provisório e conjuntural, dependerá da estabilidade do voto, da flutuação das ideologias ou dos interesses de classe, e, como tal, pode ser entendido como um barómetro orgânico que vai registando as variações da vontade política da sociedade. Mas, ontem como hoje, e hoje com uma amplitude cada vez maior, abundam os casos de mudanças políticas aparentemente radicais que tiveram como efeito radicais mudanças de governo, mas a que não se seguiram as mudanças económicas, culturais e sociais radicais que o resultado do sufrágio havia prometido. Dizer hoje governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou “conservador”, ou “liberal”, e chamar-lhe poder, é pretender nomear algo que em realidade não está onde parece, mas em um outro inalcançável lugar – o do poder económico e financeiro cujos contornos podemos perceber em filigrana, mas que invariavelmente se nos escapa quando tentamos chegar-lhe mais perto e inevitavelmente contra-ataca se tivermos a veleidade de querer reduzir ou regular o seu domínio, subordinando-o ao interesse geral. Por outras e mais claras palavras, digo que os povos não elegeram os seus governos para que eles os “levassem” ao Mercado, mas que é o Mercado que condiciona por todos os modos os governos para que lhe “levem” os povos. E se falo assim do Mercado é porque é ele, hoje, e mais que nunca em cada dia que passa, o instrumento por excelência do autêntico, único e insofismável poder, o poder económico e financeiro mundial, esse que não é democrático porque não o elegeu o povo, que não é democrático porque não é regido pelo povo, que finalmente não é democrático porque não visa a felicidade do povo.»

Já conhecerão O Caderno de Saramago... Mas saberão d' A Viagem do Elefante?

[Foto MRF, Genève 2008]

Fontes perenais de eloquência




DEVORANTE - És üa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão de esgotar.
BRIOBIS - Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.

in Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)

Efeito Doppler


Sou fã deste conceito de «ciência divertida» mas tenho a impressão de que, para a maioria dos adultos, a curiosidade por certos efeitos ou fenómenos científicos só se manifesta depois de uma ida ao médico. Por exemplo, foi preciso ver esta prescrição para me interessar pelo efeito doppler! O dedo a percorrer a água será o sangue nas minhas veias. Enfim, já me tinham avisado. Com os anos, passamos à fase da «ciência vivida».

27.9.08

Preços dos Combustíveis: assim não!

Manifesto
Duarte Vitória, 2007


«Preços dos Combustíveis: assim não!
Sábado 27: Não se esqueça, não abasteça»


A associação de defesa do consumidor, DECO, organiza este sábado uma jornada nacional de protesto contra o preço dos combustíveis, e apela aos consumidores para não abastecerem os veículos durante todo o dia.

25.9.08

A (outra) Maison Blanche

LA CHAUX DE FONDS, CANTÃO DE NEUCHÂTEL, SUIÇA
Foto MRF - Agosto 2008



Para ti, Lauro, porque o prometido, ao contrário do que dizia O'Neill, nem sempre é de vidro.

24.9.08

À minha professora


No dia 7 de Outubro fará exactamente trinta e seis anos que a conheci. Foi o meu primeiro dia de aulas.

A memória leva-me a percorrer o que me parecia ser um longo corredor escuro, no (então) Colégio Nossa Senhora da Conceição em Espinho. Até à minha sala de aula, de mão dada. Num momento qualquer, olhei para a minha mãe, que caminhava à minha direita, e ela pareceu-me demasiado grande e alheia. Como em regressão, ainda sinto o meu tamanho reduzido, a sua mão apertada, ditadora, o eco dos passos determinados, ruidosos, no corredor, e o pavor de saber que me iria deixar naquele lugar estranho. No ano anterior, em 1971, tinha regressado de Angola, da Lunda Norte, do desterro luxuoso e selvagem do Dundo, e a adaptação ao Puto estava a ser difícil. O país era parco em luz, em cor e em espaço. Não gostava de Portugal. Não gostava de casas sempre fechadas. Não gostava daquele corredor escuro.

Só recordo um dos meus colegas desse primeiro ano. Chamava-se Rui e olhava-me fixamente. A paixão do Rui por mim fez história. A mim, aquela paixão sossegou. Com os mesmos seis anos, um menino conseguiu proteger uma menina com o olhar. Um menino, e uma professora.

A Professora Fernanda Arlette não era pródiga em abraços como, de resto, nenhum professor deveria sê-lo naqueles tempos. Tinha uma postura muito erecta, um ar permanentemente aprumado. Usava um penteado à anos 50, que manteve toda a vida, o cabelo levantado e depois preso num puxo discreto. Era refinada, educada, gentil, um modelo de comportamento. Esta rigidez era apenas quebrada, ou acompanhada, pela sua voz, doce, musical, e por sorrisos afectuosos, sorrisos que eram palmadinhas de ternura. Quando se dirigia a alguém, todo o corpo e gestualidade acompanhavam a intenção. Por isso, quando entrei na sala, soube que ela me tinha visto, que ela era a responsável por mim naquele lugar, que estava feliz por me receber e, também, que ela exigiria a minha participação e obediência. A luta foi brava.

A professora observava-me, silenciosa, a maior parte do tempo. Eu escutava-a, ou não, silenciosa. Queria aprender a ler e absorvia letras e conjuntos de letras com avidez. Cedo, em casa, comecei a pegar no jornal, exibindo saber. Era a minha forma de comunicar que subira um escalão na hierarquia dos seres que dominam o mundo. Os pivots de jornais televisivos eram imperadores. Aquele domínio das palavras e o direito adquirido de as proferir na televisão não me deixavam dúvidas. A minha professora era um mestre, também ela poderia ser imperador.

No final do primeiro ano, a avaliação não perdoou: era boa aluna a português e um desastre em tudo o resto. A aritmética era um quebra-cabeças que me confundia, as aulas de música não pareciam ser coisa para levar a sério, a ginástica era uma violência - e o ginásio era um frigorífico.

«Rosarinho, temos que nos esforçar!», dizia a professora, exasperada. Mas a Rosarinho não percebia, não gostava, não queria, e ficava muda.
Há poucos anos, reencontrei-a. Trinta anos mais tarde, já reformada, a professora Fernanda Arlette mantinha o mesmo penteado e a mesma idade, parecia não ter envelhecido, parecia não ter mudado nada. Lembrava-se do meu silêncio e da batalha que tinha travado para me «soltar» e me despertar para outras matérias que não o português. Como uma gata, andei a segui-la. No segundo ano, ela optou por uma escola pública e fui atrás dela. Na «escola da Tourada» ela conseguiu moldar-me, dar-me a volta, com a disciplina e o método que lhe eram tão caros, e com aquela voz e aquele olhar sempre presente.

Naquele tempo de reguadas, foram poucas as vezes em que a vi erguer o instrumento do suplício mas, uma vez, calhou-me a mim. Passei a aula na brincadeira com uma colega e errei os exercícios de matemática! O castigo foi ficar de pé, de costas para a turma. A reguada foi dada porque, pela janela, assisti a uma senhora tropeçar e cair no recinto da feira, e desatei às gargalhadas. Mas nunca tive, não tenho emenda. Ainda hoje esse tipo de situação me faz rir.

Quanto ao resto, ela conseguiu fazer qualquer coisa, muito, por mim. Quando nos separámos, eu frequentava aulas de ballet e queria ser bailarina, não sabia se preferia História a Geografia, fazia contas complicadas com horas, minutos e segundos, era fã do Festival da Canção, queria que os meus pais me comprassem uma viola e, melhor ainda, tinha muitas amigas. Foi com a Professora Fernanda Arlette que atravessei o 25 de Abril e o período de mudanças que se seguiu. Até 1976 continuámos a cantar o hino nacional no final de cada aula e, uma vez por outra, ela fazia questão de que não esquecêssemos o Pai-Nosso. Tudo misturado com gaivotas que voavam, voavam, asas de vento, coração de mar...

Na escola pública, a minha turma passou a só ter meninas - Estela, Paula Cristina, Maria Cristina, Cristina Barbosa, Ivone, Cecília, Paula Lemos, Paula Leal, Idalina, Cláudia Sofia, Samaritana,... Lembro-me de todas, e da minha professora. Chamava-se Fernanda Arlette. Morreu este mês. Tinha quase oitenta anos, mas parecia não envelhecer.



[Imagem: Escultura de Mónica Oliveira - Memórias - Ferro pintado, resina - 39x29x8,5 cm - 2007]

Zodíaco do Quadros II

Se é Balança ou Escorpião, ou..., conheça as características do seu signo.