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20.7.12

Doroteia

Henk Braam,Tsunami,Sri Lanka

O Sol oprime a cidade com a sua terrível luz a prumo; a areia deslumbra e o mar resplende.
in Charles Baudelaire, O Spleen de Paris, XXV A Bela Doroteia


Apetece-me entorpecer, dormir a sesta. ou nada disso, e caminhar numa rua desta cidade ofuscante, assim muito segura no meu vestido quase transparente, que vai permanecer cristalino e engomado, sobre uma pele que se mantém serena e perfumada, sentindo o calor mas fazendo de conta que não. Fazendo de conta que me dirijo a um lugar determinado, ali ao pé da praia, naquela esquina entre os Correios e o café que está sempre cheio à noitinha, não agora. porque agora todos dormem a sesta no fresco dos quartos ou sobre a areia escaldante. Menos tu. que caminhas por outra rua desta cidade ofuscante, assim muito seguro nas tuas vestes de linho azul claro, que vão permanecer incólumes ao respirar da tua pele sob o céu da mesma cor. E debaixo desse céu, ouvindo o marulhar do mar, cruzamo-nos por acaso se o acaso existir, e paramos. E então eu abro a minha sombrinha e coamos a luz daquele lugar, ficando os dois pintados de reflexos sanguíneos. Por cada dez inspirações profundas, a brisa vai varrer-nos a compostura. O vestido esvoaça, os corpos estremecem, a cidade avança no tempo. mas nós prolongamos a admiração. e sem pressa aguardamos a maturidade. Um dia, a roupa vai ficar manchada. e há-de ser bom.

ou não. podemos ser surpreendidos por um tsunami. despedaçado pelo tempo, embriagas-te. com vinho, palavras, premências de prazer e depois depois depois. depois sentimos um tremendo fardo. e uma vaga surge do que parece nada e leva-te. e eu aninho-me na linha da rebentação com a minha sombrinha. e espero por ti para sempre.

ou alguém bate à porta e percebo que a cidade despertou.

MRF
2005

2.1.07

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS

Henk Braam


XIX

O Sol oprime a cidade com a sua terrível luz a prumo; a areia deslumbra e o mar resplende.
in Charles Baudelaire, O Spleen de Paris, XXV A Bela Doroteia


Apetece-me entorpecer, dormir a sesta. ou nada disso, e caminhar numa rua desta cidade ofuscante, assim muito segura no meu vestido quase transparente, que vai permanecer cristalino e engomado, sobre uma pele que se mantém serena e perfumada, sentindo o calor mas fazendo de conta que não. Fazendo de conta que me dirijo a um lugar determinado, ali ao pé da praia, naquela esquina entre os Correios e o café que está sempre cheio à noitinha, não agora. porque agora todos dormem a sesta no fresco dos quartos ou sobre a areia escaldante. Menos tu. que caminhas por outra rua desta cidade ofuscante, assim muito seguro nas tuas vestes de linho azul claro, que vão permanecer incólumes ao respirar da tua pele sob o céu da mesma cor. E debaixo desse céu, ouvindo o marulhar do mar, cruzamo-nos por acaso se o acaso existir, e paramos. E então eu abro a minha sombrinha e coamos a luz daquele lugar, ficando os dois pintados de reflexos sanguíneos. Por cada dez inspirações profundas, a brisa vai varrer-nos a compostura. O vestido esvoaça, os corpos estremecem, a cidade avança no tempo. mas nós prolongamos a admiração. e sem pressa aguardamos a maturidade. Um dia a roupa vai ficar manchada. e há-de ser bom.

ou não. podemos ser surpreendidos por um tsunami. despedaçado pelo tempo, embriagas-te. com vinho, palavras, premências de prazer e depois depois depois. depois sentimos um tremendo fardo. e uma vaga surge do que parece nada e leva-te. e eu aninho-me na linha da rebentação com a minha sombrinha. e espero por ti para sempre.

ou alguém bate à porta e percebo que a cidade despertou.




Imagine o leitor-autor que pretende escrever um livro e não sabe por onde, nem como, começar. O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS proporciona-lhe uma vasta gama de princípios para conto, novela ou romance que o leitor-autor poderá seleccionar livremente. Depois terá apenas que escrever o resto demorando o tempo que entender.

Todas as semanas saiem novos textos:
Às segundas, n' O Afinador de Sinos
Às terças, aqui
Às quartas, no Ponto.de.Saturação

O LIVRO DOS BONS PRINCÍPIOS (blogue)

4.12.06

O narrador vem tomar uma chávena de chá e Albert diz-lhe

Henk Braam

"Li um artigo seu, O fogo e o enxofre no Yediot Abronot* de ontem. Foi Rico que o trouxe e disse, lê isto, pai, e não te zangues. (...) Parece-me que ele é ainda mais esquerdista que você, Estado repressivo e coisas do género. Eu tenho menos princípios,
mas a situação também não me agrada lá muito. (...)
Claro que respeito a coragem da criança que grita o rei vai nu enquanto a multidão aclama viva o rei!, mas na situação actual é a multidão que grita o rei vai nu e talvez por isso a criança tenha que inventar um grito novo
ou dizer o que tem a dizer
sem gritar. De qualquer maneira, há barulho a mais, o país está cheio de clamores (...). Ou, pelo contrário, de um sarcasmo corrosivo: todos se condenam uns aos outros. Eu pessoalmente sou de opinião que a crítica
dos assuntos públicos deve conter, digamos, vinte por cento de sarcasmos e insultos, vinte por cento de sofrimento e sessenta de rigor clínico. (...)
O melhor que você tem a fazer é afastar-se da procissão. Fique lá em Arad e se possível escreva com serenidade. Em tempos como este, a serenidade é um bem precioso e raro neste país. E que não haja mal-entendidos:
estou a falar de serenidade, e decididamente não de silêncio."


Amos Oz, O Mesmo Mar, Ed. ASA, 2004, pp147-148


*Yediot Abronot (Ultimas notícias): jornal diário de grande tiragem em Israel

6.10.06

Outra viagem

Henk Braam


Penso no próximo fim de semana e quero que seja assim.

Loin devant les villas sur la digue, elle se tenait accroupie, les genoux au menton, en plein vent, sur le sable humide de la marée. Elle pouvait passer des heures devant les vagues, dans le vacarme, engloutie dans leur rythme comme dans l'étendue grise, de plus en plus bruyante et immense, de la mer.


Não sei se vai ser assim, mas este livro levo-o comigo. Villa Amalia, de Pascal Quignard. Talvez conheçam o escritor, Goncourt 2002 com As Sombras Errantes. As Sombras Errantes, lembram-se?

13.6.05

Foto dedicada



Morreu Álvaro Cunhal. E, sem nada preparado para escrever, pensei nesta fotografia do Henk Braam, um dos meus fotógrafos preferidos. Existirão sempre vampiros que comem tudo.

26.5.05

Já sonho com Ngorongoro XV


Henk Braam

Devia juntar-me às outras pessoas e sentar-me no chão para comer o arroz e os legumes. Mas o que desejava era comer sozinha à sombra das árvores. O Sacerdote olhou para mim fixamente. Era impossível permanecer indiferente àquele olhar tão antigo. Percebi que deveria segui-lo. Olhei para a minha mãe que susteve a respiração. Sem palavras, transmitiu-me a mensagem. Não faças disparates, não fales, escuta apenas. Em silêncio segui-o. Andamos mais de uma milha. Não proferiu uma única palavra. E assim chegamos às margens do Ganjes, sei que era o Ganjes. Então ele continuou a caminhar. Seguiu em frente, atravessando a pequena maré, como se esta não exigisse uma pausa. E quando pensava que talvez tivesse enlouquecido, parou, virou-se e, olhando à sua volta, disse: dharma! dharma!
Ali, naquele local sagrado, lembrava-me que havia um modo correcto de viver.

Delirei bastante certamente. Mas estas imagens eram recorrentes. O rosto desse Sacerdote, eu menina. E depois ouvir a tua voz e perceber aquele rosto. O meu Sacerdote era o Imam! Hinduismo e Islamismo tinham o mesmo rosto! Templos e Mesquitas, Brama e Alá, Vedas e Alcorão, fundidos no sonho delirante de uma católica romana perdida em Zanzibar. Mas sei que o meu passado distante tocou todos esses mundos. Terei sido algum dia aquela menina? Esse homem será aquele que me guia em todas as vidas?

Começo a sentir-me mais forte mas continuo confusa. No meu sonho o Sacerdote cantava um hino: "tocai a concha, acendei o incenso". E o Imam dizia "toda a ventura que te ocorra emana de Deus; mas toda a desventura que te açoita provém de ti." Avisos. Sob a forma destas vozes profundas, tão meigas. Avisos. Vocês sentem esta humidade? bin, bagaço, Andwele!
Acho que preciso de mais repouso!

22.4.05

O Filho


Henk Braam, foetus

Em plena guerra, a vida levou-te a ser o amor do soldado...

Ai, filho, sabes, sabes
donde vens ?

Dum lago com gaivotas
brancas e famintas.

Junto à água de inverno
ela e eu levantámos
uma fogueira rubra,
consumindo os lábios
de tanto beijarmos nossas almas,
lançando ao fogo tudo,
queimando as nossas vidas.

Assim vieste ao mundo.

Mas ela, para ver-me
e para ver-te, um dia
atravessou os mares
e eu, para abraçar
sua pequena cintura,
percorri a terra inteira,
por entre guerras e montanhas,
areais e espinhos.

Assim vieste ao mundo.

Vens de tantos lugares,
da água e da terra,
do fogo e da neve,
de tão longe caminhas
ao encontro de nós dois,
desse terrível amor
que nos acorrentou,
que queremos saber
como és, que nos dizes,
porque tu sabes mais
do mundo que te demos.

Como uma grande
tempestade sacudimos
a árvore da vida
até às mais ocultas
fibras das raízes
e apareces agora
cantando na folhagem,
no mais alto ramo
que contigo alcançamos.

in Pablo Neruda, Os Versos do Capitão

26.2.05

Ultimos versos

PROVINCIANAS


Henk Braam

I

Olá! Bons Dias! Em Março,
Que mocetona e que jovem
A terra! Que amor esparso
Corre os trigos, que se movem
Às vagas de um verde garço!

Como amanhece! Que meigas
As horas antes de almoço!
(...)


II

Ao meio-dia na cama,
Branca fidalga, o que julga
Das pequenas da su'ama?!
Vivem minadas de pulga,
Negras do tempo e da lama.

Não é caso que a comova
Ver suas irmãs de leite,
Quer faça frio, quer chova,
Sem uma mamã que as deite
Na tepidez de uma alcova?!

.....................................
.....................................
.....................................
.....................................*

*O poema ficou incompleto, estes foram os últimos versos do Poeta.
in O Livro Verde de Cesário Verde, Assírio & Alvim, 2004
[Lisboa, 25.02.1855-19.07.1886]

25.2.05

Quimera, ansiedade e mito social


Henk Braam

Este é o título de um pequeno capítulo da grande obra do Professor Norman Cohn, Na Senda do Milénio - Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos da Idade Média (Presença, 1981), que eu relia por alto porque me pareceu que este amigo iria certamente deliciar-se com ela. Encontrei aí um fragmento que me fez pensar na actual conjuntura política e que me deixou a impressão de que estamos muito próximos da visão medieval do mundo.
"Tem sido observado pelos psicanalistas que a visão do mundo do Cristianismo medieval tende a revestir a forma de uma luta de morte travada pelos bons pais e os bons filhos contra os maus pais e os maus filhos. (...) Já na figura (...) do Cristo que regressa - se encontram combinadas as imagens fantásticas do bom pai e do bom filho. Por um lado, o chefe possui - à semelhança dos faraós e muitos outros reis divinos - todos os atributos de um pai ideal: é perfeitamente sábio, é perfeitamente justo, protege os fracos. Mas, por outro lado, é também o filho cuja missão é transformar o mundo, o Messias que deve instaurar um novo céu e uma nova terra e que poderá de si mesmo dizer: Eis que faço novas todas as coisas!" (pp 69)
Sinceramente, excluindo o facto de já não lhes atribuirmos poderes sobrenaturais, eu diria que ainda exigimos aos nossos líderes políticos que sejam verdadeiros Messias! (fico a aguardar as vossas prédicas revolucionárias ou anarco-místicas)

16.2.05

Do Rio de Janeiro


Henk Braam

A Simone é uma amiga brasileira, ilustradora, que viveu em Portugal durante vários anos. Agora vive no Rio e, com regularidade, ela envia notícias do seu Brasil. Vai-me informando sobre o sentimento da população face ao governo de Lula da Silva, sobre os últimos casos mediáticos ou onde fica o último paraíso à face da terra. Muitas vezes, também, chegam-lhe ecos das terras lusitanas e ela escreve a pedir mais informações (foi assim com a saída de Durão Barroso do governo, com a decisão do PR de nomear novas eleições, etc.). Uma das pessoas que me enviou aquele filme do Bruno Bozzetto, acompanhado de um comentário de auto-crítica em relação ao seu país, também foi ela. Hoje, em resposta ao post que coloquei aqui ("Auto-imagem") disse-me:
"Realmente é incrível como somos críticos. Mas a propósito dos discursos políticos, actualmente circula uma campanha do governo federal que procura resgatar a auto-estima dos brasileiros. São filmes onde se mostra a trajectória de personagens reais, brasileiros marcados pela vida dura com que foram obrigados a viver. São casos bem sucedidos, é claro. Um dos filmes mostra um menino orfão que fugia sempre dos orfanatos e que, numa das suas escapadelas, conhece uma mulher que o adopta. Apesar da vida marcada por tantas agruras, ele dá a volta por cima e hoje está formado em pedagogia e é especialista em literatura infantil e um excelente “contador de histórias”. Visita escolas, orfanatos, encenando a arte de se contar uma boa história infantil. Não bastasse tudo isso, tem vários filhos adoptivos. O filme acaba com o slogan “O melhor do Brasil é o brasileiro”. Dessa forma o governo deixa para nós a responsabilidade e lava as mãos. Sei que a mensagem é “vamos pessoal, não se abatam, você pode tudo!”, mas deixar que o sucesso de um país seja batalhado por pessoas sofridas, sem lhes dar boas condições, e exigir que ainda por cima tenham a auto-estima em alta com a geladeira vazia (isso quando se tem geladeira), é um pouquinho demais. Simone Villas-Boas"