18.8.07

Passar o Caldeirão


O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. (...) passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. (...)
No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também não me vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril. A terra não hostiliza os pés, o mar não cansa os ouvidos, o frio não entorpece os membros, e os frutos são doces e sempre à altura da mão. (...)
Mas no Algarve um poeta tem a sensação de que se pode viver do ar, sem ter necessidade de pensar sequer no dia de amanhã.(...)
Que me importam as paredes do castelo de Silves pintadas de sangue fiel ou infiel, as arquitecturas do Marquês, em Vila Real de Santo António, ou os biocos de Olhão? A lição que me interessa não é histórica, nem artística, nem etnográfica. Cheio de façanhas, de urbanismos e de folclore ando eu. Apaixona-me é a vivência da minha própria felicidade num mundo que me recebe na mais discreta e acolhedora simplicidade. (...)
Quando as notícias chegam, já é tarde para se lhes acudir.


in PORTUGAL, de Miguel Torga
Ed. Coimbra, 1967, 3ª Edição revista, pp 131-134


Quando regressar dos Algarves, falo-vos da terra do mestre Torga. Andei pelo seu "reino maravilhoso", aquele que fica no cimo de Portugal, "como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos". Vou falar-vos do mar de pedras. Mas só depois de ter mergulhado no mar de sal. Até lá.

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