17.7.08

Ser português é também uma arte #7

«VAIDADE SUSCEPTÍVEL

É outro defeito muito vulgar num Povo que foi grande e decaiu. Inferior e pobre, considera-se ainda possuidor dos bens arruinados. Continua a viver, em sonho, o poderio perdido. Mas, como toda a vida fantástica pressente o próprio nada que a forma, torna-se, por isso mesmo, de uma susceptibilidade infinita, sangrando dolorosamente, ao contacto de qualquer coisa de real que, junto dela, se ponha em contraste revelador da sua ilusória aparência.
O português é um herdeiro esbulhado dos seus bens materiais e espirituais. Mas vão dizer-lhe que é pobre! Suprema ofensa! Não ignora a sua pobreza, porque é vaidoso, mas quer que os outros a ignorem; e serve-se para isso, de todos os meios que iludem, criando o seu drama em que é autor e actor. E engendra mil preconceitos, fórmulas, propícios à atmosfera de ilusão em que pretende viver acompanhado... E assim, o arrastar de uma espada já imprime heroicidade, dois termos de tecnologia científica embutidos na prosa amorfa de jornal já fazem o sábio, como duas rimas banais fazem o poeta, e um correio a cavalo uma entidade superior do Estado.»

Teixeira de Pascoaes, in Arte de Ser Português
Assírio & Alvim, BI - Biblioteca editores Independentes, 2007, pp 117-118

Yasmine Jasmim

Foi preciso conhecer a Tunísia para perceber que Yasmine significa jasmim. A princesa Yasmine, amada de Aladino, que uma das minhas filhas adora, chama-se «jasmim»! Andava a perder uma parte da beleza do conto. Na Tunísia, um ramo pequenino custa um dinar e existem miúdos aos molhos a vendê-los. Os homens enfeitam-se com chapéus decorados a jasmim. Parecem pavões. e atraem o olhar pela cor e pela alegria que transmitem. Jasmim é festa!

Fotos MRF
Julho 2008

16.7.08

Turismo

(...)
Pintado entre mil quinhentos e – acho que é assim, esgueiro-me sobre os meus pés de veludo vermelho. Se eu fosse um instrumento dir-me-iam um órgão, se eu fosse dir-me-iam. Então eu estranho que não tenha vontade de gritar; e mesmo a Sacra Adrenalina goteja com irregularidades. A técnica do sfumato, que permitiu a revolução da perspectiva, foi desenvolvida. Então esse é o meu pensamento. E penso que as ideias são aragens do corredor. Esgueiro-me porque não existem linhas rectas. Quem passar nos espaços é sonhado pelas ideias dos espaços. A arquitectura precede a essência. A linguagem é o palácio do ser. Como uma aranha a quem arredondassem os ângulos da teia. Mas será a teia recta no início – a priori? Quem sou, quem posso ser, se construo a minha filosofia como um medidor de consequências, se copio num caderno toda a Ética de Espinosa, verificando implicações, e um pensamento súbito nasce em mim? Quem dizia: não é eu penso que se deve dizer, mas sim pensam-me? Não me lembro. Não é lembrado em mim por alguém. Não é em mim sabido quando alguém em mim leu. Non cogito, non sum. Quem dizia: todos os problemas filosóficos são apenas erros de linguagem? Quem nele dizia isso? Quem o diz em eu dizer? Sou um feto num balão placentário; rolo por um corredor cheio de luz.

Desço; no início era a curva, a linha ondulada, o caminho íngreme, a diferença. No início eu digo o plural, o bem e o mal. No início as bolhas de oxigénio fazem delirar como a palavra de Deus, explodindo na capital das células. Se eu fosse um toque dir-me-iam o angelus; mas o que é ser? e o que é ser dito? No início é nada ser dito; esgueiro-me; mas não peço qualquer socorro mesmo se sinto, como quando sentia, os milagres prontos a jorrarem da palma da mão. Eu sou – eu era o semeador de tudo isso, como um louco gritando o nome de Deus. E porque o orgulho lia por cima do meu ombro, eu fechava a mão com firmeza. Eu a mão tinha assinado o pacto com o diabo? Verweile doch, du bist so schoen... E nesta sala os Bórgias erravam de um lado para o outro. E nestas salas o tratado foi discutido. E nestas salas Trento. E nestas salas – flashlashlash! – o CONCÍLIO ECUMÉNICO. O feto rebola, aquém, além, verme no sol do tempo.

Descerei até chegar ao centro do mundo.

Pedro Eiras
Turismo, in Estiletes, 2001

Apetece-me Aveiro

A viagem à Tunísia correu bem, apesar dos 45 graus à sombra. mas é sempre bom voltar ao meu quarto com vista para a cidade...

Medina de Hammamet #1

Uma das Portas de Entrada na Medina de Hammamet, Tunísia.
No seu interior outras portas, únicas, variadas, coloridas, belíssimas...

Fotos MRF
Julho 2008

15.7.08

Ulisses existe! ;)

Hoje é o dia do quinto aniversário do Miniscente... e «Hoje em dia, no mundo célere em que vivemos, cinco anos são cinco séculos. Quase meio milénio, ou seja: qualquer coisa já muito perto da salvação.»

Mesura, grafia

(...)
Comprei um diskman, pus as pilhas, o cravo bem temperado, escolhi uma fuga. É uma tardia modernidade, dilatada adolescência, pressiono esta tecla, play, ouço, atravessando a cidade. Chove, já é noite; as pessoas não saem às lojas, que recolhem os toldos. Em torno dos candeeiros a chuva é uma auréola, mas não é disto que queria falar. Avanço e os meus passos de quatro por quatro. Porque me dou conta: em torno dos piscas dos carros, das vozes que monologam, esta repetição: o quaternário e eu. Torno-me máquina, em cada desenlace da fuga os meus pés tocam no chão, pesam sobre a terra. Obedeço, sou uma máquina de música, inteiramente feliz.

Os meus pés sabem o ritmo da fuga como um relógio: alcançam o mundo numa confirmação absoluta, dança silente (ninguém me ouve). Confirmação: sim. Perdidos no ruído silente, os meus pés, ali, mesuram. O imenso ruído e o meu esquecimento – é preciso não pensar a palavra que se segue, não prever, estar aqui, não temer a chuva, infinito trilo contra o guarda-chuva, a ameaça das pequenas varetas a abrirem o ar. E os meus pés, baixo contínuo, gravíssima entrada do tema na vibração das vísceras. Há o que ouvir sem ouvidos, música que não embate contra os tímpanos, pura potência no som que empurra o sangue. Há o ruído das ruas e a música como um ditame. Eu faço o que não ouço, obedeço sem ordens.

Se entro noutra fuga, o compasso é ternário; então os passos mesuram a mesma cidade com outro assentimento. Não a mesma cidade. Outra: a cidade obedece. Ao fundo, um lixeiro abrigado sob um toldo esquece o tempo batendo com as duas pás no rebordo de um contentor que se equilibra. Bate e o som fere a chuva, sorri com agrura, é o tempo dele, bate para medir o espaço, para ordenar o mundo. Eu passo, não preciso de pôr o volume mais alto no diskman, somos abafados pela mesma chuva, que é também o ruído fantasma desta gravação muito antiga do cravo bem temperado, cada um na sua música, ouço: o mesmo ritmo.

Se atravessares a cidade ouvindo uma fuga em quaternário, os teus passos serão diferentes dos que terias ouvindo uma fuga em ternário. Porque medirias o teu espaço com outro palmo, pois a tua mão tem deveras o tamanho da música que ouvires, e ouvir não é sequer receber a música como recebo a chuva, mas suster este discorrer dos músculos em sintonia com o mundo que chama os teus pés. A terra ainda nos quer, nós somos os desejados – escrevia Benjamin. É para nós esta música.

Por isso não há cidade, mas passeios em que te arrebatam a chuva o sangue o compasso de um apelo inaudível. Aquele que passeia com o diskman recém-comprado, que leva consigo a gravação antiga – passa e não insiste demasiado em pressionar a terra. Está de passagem, apenas não o sabe porque saber seria ainda demasiado violento, palavras seguidas. Para ouvir, basta ser o corpo de música, esta coisa carregando um feixe de cordas estiradas, ferida do ar que atravessa o espaço e crava as pegadas efémeras de uma ordem, esta ordem, depois outra, como quem tacteia o mundo com uma mão a transformar-se em régua, depois lagarta, depois lençol de água.

Porque atravessar assim a cidade é o mesmo que não existir. Avanças, os teus pés obedecem a um adagio, transformas-te em lentidão. Olha como em ti os pés ficaram longe, eco que se adivinha, e no centro só a série de sons, a inflectir para um tom desconhecido a qualquer instante. O que vês e te cerca é uma sombra dessa oferta de sons. Pois não deves ter medo de retirar à tua visão o privilégio de ser real. Real é esta música, e tudo quanto vês depende dela. Era o que eu te dizia: os teus pés batendo contra a terra em quaternário, não a terra em si, que nunca saberás o que é.

Modernidade tardia, ouço bem, prisão e engano dos meus sentidos, esta música que se faz em mim porque tenho os ouvidos perto das fontes electrónicas, estereofonia, para se tecer como um só objecto perene nesse sítio onde me esqueço de ser eu. Diskman desaparecendo para que haja só esta máquina de música em que me tornei, relógio que me constitui me projecta para a gravidade. Não uma cidade que atravesso, mas a cidade que sou, não os passos na rua, mas a repetição rigorosa de um regresso marcando o espaço onde não havia.

Na verdade, a ausência da verdade, esta verdade apenas.

E se o cravista suspende a resolução do compasso, quando as múltiplas linhas se harmonizam em mim, o brevíssimo instante sem respiração transtorna-me como se eu tropeçasse num abismo. Mais perigoso do que os carros regressando desenfreados a casa, para o jantar. Onde a resolução se demora, o espaço distende-se infinitamente, e eu espero a confirmação. Como se a minha vida dependesse desse encontro marcado, e é verdade que depende. A corda vibra enfim e eu toco o chão real, quente, amparado.

Cercam-me vozes, um grupo de pessoas discute um acidente, insta. Circundo e por instantes há uma perturbação no que ouço, imagem turva distendida para todos os lados, imerge de súbito numa neblina. Quero ter consciência de mim outra vez. E outra vez volta a música, e o meu corpo à distância. Sobre as vozes exaltadas, uma ordem refaz-se com suas expirações de sentido. Olho, mas a vibração sobrepõe-se ao mundo, não como uma legenda, sim como o pintor que retoca a fotografia, e diz melhor as cores que ali dormiam. Pois a música não é anterior a esta imagem da cidade – antes a cidade nasce daqui, pelas aberturas que a música deixa no espaço. O mundo obedece, responde submisso às cordas.

Um homem bate com duas pás no tempo da sua vida repetida. Eu sou inteiramente feliz.

Pedro Eiras

14.7.08

Ser português é também uma arte #6

«...A aventura não tem continuidade na acção. Opera por impulsos que nem sempre se coordenam para um determinado fim. E por isso, a obra empreendida, muitas vezes, morre no seu início.
Quando uma virtude ou qualidade enfraquece, logo o seu defeito originário ganha nítido relevo. E assim o génio de aventura, decaindo, transformou-se na mais completa falta de persistência. Ela aparece em todas as manifestações da nossa actividade, a cada passo interrompida ou abortada, o que a torna tristemente caricatural.
Ei-la passeando o seu desânimo, pelas estradas que pararam, mortas de cansaço, a dois quilómetros do ponto de partida. E vive num belo edifício público sem telhado... Sozinha? Não: com a sua bem-amada companheira, a vil tristeza, apesar de ser tão velha que já Luís de Camões a conheceu...»

Teixeira de Pascoaes, in Arte de Ser Português
Assírio & Alvim, BI - Biblioteca editores Independentes, 2007, pp 115

2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008

A Invasão do Iraque iniciou-se a 20 de Março de 2003. Bagdad caiu a 9 de Abril. A 1 de Maio do mesmo ano, George W. Bush declarou o fim das operações militares; o Partido Baath foi dissolvido e Saddam Hussein foi deposto. Os objectivos da invasão eram, segundo o presidente dos EUA e o então PM inglês Tony Blair, desarmar o Iraque das "armas de destruição maciça" (WMD), acabar com o apoio de Saddam Hussein ao terrorismo e libertar o povo iraquiano. O Relatório Butler foi publicado a 14 de Julho de 2004. Principal conclusão: «There was "no recent intelligence" to lead people to conclude Iraq was of more immediate concern than other countries». A guerra, essa, continua.

O melhor ponto de vista:
Portugal não perdeu nada com isso!

12.7.08

Ser português é também uma arte #5

«...O bom senso nacional conciliou o culto do divino e o maléfico.
Deus e o Demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal.

Um chabo
Ao diabo
Sempre se deu...

Ditado popular

Este bom senso deriva do nosso carácter espiritual e sensual. E eis a nossa comédia que se opõe, retemperando-o, ao trágico aspecto da nossa alma, dominada pelo Medo misterioso... Ao Medo, que é também o Demónio, prestamos um culto corruptor. No seu altar fantástico retine o cobre da nossa esmola...»

Teixeira de Pascoaes, in Arte de Ser Português
Assírio & Alvim, BI - Biblioteca editores Independentes, 2007, p. 114