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27.4.08

Un poquito de Sancho Pança, por favor


«(...) mas aqui, o nosso autor refere-se à presteza com que se acabou, se consumiu, se desfez e se dissipou, como em sombra e em fumo, o governo de Sancho, o qual estando na cama, na sétima noite da sua grandeza, mais farto de julgar e de dar sentenças, de fazer estatutos e pragmáticas do que de pão e vinho, quando, apesar da fome, lhe começava o sono a cerrar as pálpebras, ouviu tamanho ruído de sinos e de vozes que não parecia senão que a ilha toda ia ao fundo.» pp. 433, II Volume
«(...) e nem o vê-lo caído inspirou a mínima compaixão àquelas gentes zombeteiras; antes, apagando os archotes, tornaram a reforçar os gritos e a reiterar o alarme, com tanta pressa, passando por cima do pobre Sancho, dando-lhe infinitas cutiladas, que, se ele não se recolhe e encolhe, sumindo a cabeça entre os escudos, passava grandes trabalhos o pobre do governador...» pp. 434, II Volume

Qualquer semelhança entre ficção e realidade é pura coincidência. É que Sancho Pancha, governador por ambição, logo se desenganou:
«Isso não são brincadeiras para duas vezes; com este governo me fico e não torno a aceitar mais nenhum, nem que mo ofereçam numa bandeja, que eu não sou dos que querem voar ao céu sem asas. Sou da linhagem dos Panças, que sempre foram cabeçudos, e que, em dizendo nunes, nunes hão-de ser...» pp. 438, II Volume

E, se dúvida restar, fica o recado do ex-governador ao duque seu senhor: «que sem mealha entrei neste governo e sem mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de outras ilhas...» ibidem


Citações in D. Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes
Ed. Círculo de Leitores, 2005

25.4.08

Viva a Liberdade! (ao largo os Passa-Monte!)

Cruzeiro Seixas
O Céu estava lucidíssimo
Gouache s/ papel - 19x16 cm - 1973



CAPÍTULO XXII
Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados que iam levados contra sua vontade onde eles por si não queriam ir

(...) alçou D. Quixote os olhos e viu que pelo seu caminho vinham uns doze homens a pé engranzados como contas numa grande cadeia de ferro pelos pescoços, e todos algemados. (...)
- Esta é cadeia de galeotes, gente forçada da parte de el-rei, para servir nas galés.
- Como «gente forçada»? - perguntou Dom Quixote. (...)
- Em conclusão - replicou Dom Quixote -, como quer que seja, esta gente, ainda que os levam, vai à força e não por sua vontade.
- É verdade - concordou Sancho.
- Pois sendo assim - disse o amo - aqui está onde acerta à própria o cumprimento do meu ofício; desfazer violências e dar auxílio a miseráveis. (...)
Nisto, chegou a cadeia de galeotes e Dom Quixote com mui corteses falas pediu aos que os iam guardando fossem servidos de informá-lo e dizer-lhe a causa ou causas, por que levavam aquela gente daquele modo. (...)
- De tudo o que me haveis dito, caríssimos irmãos, tenho tirado a limpo o seguinte: que e bem vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides padecer nem por isso vos dão muito gosto, e que ides para elas muito a vosso pesar e contra vontade, e que bem poderia ser que o pouco ânimo daquele nos tratos, a falta de dinheiro neste, os poucos padrinhos daqueloutro, e, finalmente, que o juízo torto do magistrado fossem causa da vossa perdição e de se vos não ter feito a justiça que vos era devida. (...)
- Graciosa pilhéria é essa - respondeu o comissário - e vem muito a tempo. Forçados de el-rei quer que os soltemos, como se para tal houvéssemos autoridade ou ele a tivesse para no-la intimar! Vá-se Vossa Mercê, senhor, nas boas horas; siga o seu caminho e endireite essa bacia que leva na cabeça, e não queira tirar castanhas com a mão do gato.
- Gato e rato e velhaco sois vós, patife - respondeu D. Quixote.
E, dito e feito, arremeteu com ele tão a súbitas, que sem lhe dar azo de se pôr à defesa, deu com ele em terra malferido de uma lançada; e dita foi, que era aquele o da escopeta. (...)
Tamanha foi a revolta que os guardas já para terem mão nos galeotes, que se estavam soltando, já para se haverem com D. Quixote, que os acometia a eles, não puderam fazer coisa que proveitosa lhes fosse.(...)

Passa-Monte, que nada tinha sofrido e já estava caído na conta de que D. Quixote não tinha o juízo todo (pois tal disparate havia cometido como era o de querer dar-lhes liberdade), vendo-se maltratado e daquela maneira, deu de olho aos companheiros, e retirando-se à parte, começaram a chover tantas pedradas sobre D. Quixote que poucas lhe eram as mãos para se cobrir com a rodela; e o pobre Rocinante já fazia tanto caso da espora, como se fosse de bronze.(...)

Ficaram sós o jumento e Rocinante, Sancho e D. Quixote: o jumento cabisbaixo e pensativo, sacudindo de quando em quando as orelhas, por cuidar que ainda não teria acabado o temporal das seixadas, que ainda lhe zuniam os ouvidos; Rocinante, estendido junto do amo, pois também o derrubara outra pedrada; Sancho desenroupado e temeroso da Santa Irmandade; e D. Quixote raladíssimo, por se ver com semelhante pago daqueles mesmos a quem tamanho benefício tinha feito.

in D. Quixote de La Mancha, de Miguel Cervantes
pp. 213 a 223 do I Volume, Ed. Círculo de Leitores, 2005

Que o tempo não desbarata

Cruzeiro Seixas
Cavalo e Cavaleiro eram agora um vivo que possuíam todo o espaço
Desenho s/ papel - 21x29 cm - 1972



Sexta-feira, dia 23 de Abril, comemorou-se o Dia Internacional do livro. Foi em Espanha que surgiu esta ideia de festejar o livro, e a data escolhida sempre homenageou Miguel de Cervantes. Até 1930, coincidia com a sua data de nascimento; nesse ano foi alterada para 23 de abril, dia do seu falecimento.
Só em 1995, a UNESCO instituiu 23 de abril como o Dia Internacional do Livro e dos direitos dos autores.

Comprei há pouco tempo uma edição de D. Quixote de La Mancha (Círculo de Leitores). Devolvi à precedência o exemplar que o meu pai também já adquirira a essa editora há algumas décadas atrás. O meu D. Quixote parece ter outro sabor, não sei bem porquê. Tenho-o desfolhado aos poucos, saltitando páginas, feliz por reencontrar passagens que retive na primeira leitura. Talvez não saibam, mas
o livro foi publicado em Portugal no mesmo ano em que foi editado em Madrid (1605). A obra escapou às perseguições do Santo Ofício.

Decidi associá-lo à comemoração do 25 de Abril. As aventuras do Ingenioso Hidalgo não podiam cair no esquecimento. As aventuras dos nossos capitães também não. Fiquei feliz por assistir a tantas (boas) reportagens e entrevistas televisivas nas últimas semanas, nomeadamente na RTP. Como Cervantes, «não podia inclinar-me a crer que tão galharda história tivesse ficado manca, e já atirava a culpa à malignidade do tempo devorador e consumidor de todas as coisas, que ou tinha aquilo oculto, ou o desbaratara e perdera(pp. 85, Vol. I).