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15.4.07

Lembranças II

Guardei o coração de uma mulher durante alguns minutos. depois ela quis ouvir o meu. disse-lhe que era do lado esquerdo. mas ela devia saber, trazia o Romeu e Julieta do Shakespeare na mão, e muitas lembranças num sapato que cheirava a graxa ou aos armários da casa da sua avó.

Às escuras numa carrinha, fechei os olhos e centrei-me nos sons da praça, buscava a melodia da rua. ouvia-a. e depois perguntaram-me se conseguia ouvir o silêncio para além dos sons da praça. foi mais difícil, mesmo se há dias em que até a praça só me traz silêncios. Entrei num avião de latão e viajei até África. vi duas zebras, mãe e filha, à chegada, e elefantes pequeninos dentro de elefantes maiores. e depois, o mágico fez aparecer um coelho que ficou sem pais e cresceu no seio de uma couve. Cresceu. Um dia, depois do tempo, quando o verde se fez areia, ele comeu a mãe couve. porque ela quis.

A mãe e o pai daquele outro homem também viajaram um dia. entre Sá da Bandeira e Benguela. num jipe. andei no jipe dos pais dele. O pai nunca falava em casa, mas no trabalho era o mais simpático e divertido dos colegas. ele assobiava, era o que assobiava. e a mãe era camionista mês sim, mês não. nos meses não, fazia o pequeno almoço para o marido e o filho e depois pescava prostitutas, que lavava e alimentava, mas só até ao meio-dia. nessa viagem, naquele jipe em que eu andei, morreram depois de pisar uma mina. O homem tinha nove anos e estava ali com aquela lembrança porque tinha asma e ficara no Puto com a avó.

Já aquele outro casal, começou por se amar muito e teve tempo para desaparecer desamando-se. Tudo porque ela era bonita. tão bonita que mulheres, homens e crianças paravam para a ver passar. e ele adoeceu de ciúmes. adoeceu mas não se deitou. adoeceu e maltratou. tirou-lhe os brincos de pérolas (eu vi-os na caixa de madeira das recordações, a caixa que guardamos no sótão, e que tem pó, teias de aranha e às vezes musgo)(são valiosas as caixas verdes de musgo!).
tirou-lhe os belos vestidos de seda. tirou-lhe a beleza. e depois teve saudades. saudades de sentir desejo. por ela. que desaprendera de ser bela.

As casas, as nossas, as do lado e as que vemos ao longe, também guardam lembranças e mistérios. Aquela casa tinha raízes de árvore. e uma espécie de fada enrolada num ramo contou-me uma dessas lembranças. Só vos digo que havia um cão que ladrava e um bosque que foi assassinado por medo.

E porque quis o Mário beber cem cafés?
E do apagão, ouviram falar?

Tive lembranças do Senhor Valéry quando a técnica-de-apagões me explicou que o avô dizia que os homens devem estar à altura das suas tarefas. nem acima nem abaixo, para as mãos não tremerem. à altura.

E na Praça Marquês de Pombal - o Marquês tem muitas, mas esta era a de Aveiro! - a criação de Madalena Victorino, apesar do frio, não os fez tremer. a eles, actores.

Fiquei com as Lembranças.
Um dia destes, elas vão correr pelos vossos lados. Guardem-nas. mesmo que chova. que o verde do musgo é a cor da memória.

13.4.07

Lembranças, de Madalena Victorino, no TA

Teatro Aveirense, Sábado, 14 de Abril
Sessões pelas 16:00, 17:30, 21:30 e 23:00

10 carros na Praça Marquês de Pombal. Saltando de carro em carro, dá-se o encontro entre o actor e o espectador, em 10 curtas peças que, localizando-se entre o teatro e a dança, ficcionam, para duas pessoas de cada vez, um mundo insólito de poesia.
Levam cerca de cinco minutos, oferecem uma experiência que não se esquece. 10 actores com qualidades interpretativas especiais apresentam 10 Histórias, que usando as ferramentas do humor, do amor, do terror e acção, divertem, encantam e intrigam.

“Lembranças” é uma criação colectiva de Madalena Victorino com Ana Cloe, Carla Chambel, Carla Galvão, Cláudia Gaiolas, Cláudio Silva, Gonçalo Amorim, José Abreu, Letícia Liesenfeld, Lucília Raimundo, Mafalda Saloio, Paula Diogo, Romeu Costa.

Preço único: 10 Euros.
Lotação máxima por sessão de 20 pessoas.