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28.1.05

Estranheza familiar


Francis Bacon

Ainda a entrevista ao Gonçalo M. Tavares. Um último instar ao apetite. Como sobrevive um livro ao tempo?

RF: Há uma citação do (Paul) Valéry de que gosto muito. "Os livros têm os mesmos inimigos que o homem – o fogo, a humidade, os bichos, o tempo e seu próprio conteúdo".
GT: O conteúdo é fundamental desde o tempo em que os livros eram memorizados. As pessoas sabiam os livros de cor mas, para isso acontecer, o conteúdo tinha que ser interessante. Aí, a associação entre o homem e o livro ainda era mais evidente.
RF: É engraçado, eu associava o conteúdo ao tempo, saber se um conteúdo pode gerar interpretações válidas em diferentes contextos sociais e históricos. É a questão do que é universal ao longo dos tempos.
GT: O que pode ser universal são aqueles conteúdos que não apresentam uma solução e que hoje já geram várias interpretações. Uma das coisas que mais me agrada é perceber que há diferentes interpretações dos vários livros que escrevi. Os livros que são flexíveis e que duram são os livros que nos deixam sempre pensar que podia ser sobre o dia de hoje.
RF: E não são também aqueles que tocam os sentidos? Que falem de medo ou de amor.
GT: Sim, há uma expressão que o Freud utilizava e que gosto muito que é a "estranheza familiar". A estranheza familiar é sentirmos que alguma coisa não está certa mas que, ao mesmo tempo, há uma parte dessa coisa que reconhecemos e que nos é familiar. Sinto-me em casa mas sinto-me ameaçado. Essa sensação pode, eventualmente, ser uma das marcas dos livros que resistem ao tempo. O familiar permite que exista essa ligação porque, se não houver um fio que me ligue, aquilo é outro mundo. Mas, se me é totalmente familiar, já não interessa, já está assimilada.
Esse conceito do estranho familiar é isso: há uma parte que me agarra mas há também outra parte que ainda não entendi. E é essa parte que ainda não entendi, que me permite continuar a olhar para o livro. Como escritor, uma coisa que também adoro é – e os livros saíram há pouco tempo – dizerem-me "já li este livro várias vezes". Prefiro ter releitores que muitos leitores.
(mais do GT ali ao lado, na coluna da direita)

As guerras são quase naturais


Francis Bacon

Ontem, dia 27, despertamos a nossa memória colectiva. Evocamos a máquina do horror e celebramos o seu fim. Há 60 anos o campo de concentração Auschwitz-Birkenau foi libertado pelo exército soviético. Lia A Fábrica e recordava-me da entrevista com o Gonçalo M. Tavares. A bestialidade é um mistério. O horror não foi exterminado. Este mundo continua em guerra. Decidi transcrever aqui parte dessa entrevista. Até para me "despedir" do Gonçalo, uma vez que na próxima semana vai ser lançada nova entrevista. Neste fragmento ele levanta algumas questões. Todos os domínios do conhecimento congregados - mas sobretudo a biologia e a genética, poderão decifrar o mistério e libertar-nos?

RF: Vamos falar de algumas das tuas constantes. Escreveste vários livros (Um Homem: Klaus Klum; A Máquina de Joseph Walser; Jerusalém) centrados no tema da guerra e parece que vão sair ainda outros ("livros negros").
GT: Interessa-me perceber o fenómeno.
RF: Um pouco como o personagem do médico Theodor em Jerusalém…, ele especializava-se no horror!
GT: Perceber por que é que é quase natural aparecerem as guerras é algo que me interessa, e é uma estranheza. Parece ser algo cíclico mesmo que, em cada momento, pensemos que não é aceitável. Em cada geração, as pessoas surpreendem-se mas é quase como nos surpreendermos com o nascimento de uma criança. Parece inevitável, natural.
RF: E no pós-guerra, que mudanças podem ocorrer? Nos teus livros ficamos com a impressão de que nada avança, de que tudo se mantém. Pode haver mobilidade – as pessoas são peões, mas a estrutura mantém-se. A guerra não provoca revoluções.
GT: Só o facto de as guerras se irem sucedendo, por maior que seja a evolução tecnológica e intelectual, é já uma demonstração de que não há avanço. Se lermos qualquer tragédia grega centrada numa guerra, percebemos que as causas desses tempos são semelhantes às de hoje.
RF: O Edgar Morin falava muito bem disso, mantêm-se as questões de definição de território.
GT: Há a sensação de que existem dois mundos em desenvolvimento: o mundo material, em que claramente, o homem progride. O homem tem cada vez menos dor e vive de uma forma mais confortável de modo geral. Todo o progresso evolui no sentido de aumentar o tempo de vida com menos dor. Temos pois, de um lado o desenvolvimento da cidade, no seu conjunto. A grande invenção humana não é nenhuma tecnologia, é o conceito de cidade, o conceito de pessoas a viver juntas não se matando umas às outras.
Depois, paralelamente a isto, há o indivíduo sozinho. O que sinto é que se pensarmos no progresso desde há 2000 anos, houve nitidamente uma grande evolução ao nível material mas individualmente – em termos do que é o homem, dos medos que tem, da agressividade – quase que podemos traçar uma linha recta. Platão compreenderia perfeitamente o homem de hoje mas ficaria muito espantado com um frigorífico. E eu acho que este é um dos grandes mistérios.
RF: Do ponto de vista biológico, neurológico, não progredimos!
GT: Sim e, nesse aspecto, uma das coisas mais familiarmente estranhas, porque muito ameaçadoras e perigosas mas, ao mesmo tempo, mais estimulantes, é realmente a questão de mexer na genética. O que se percebeu até agora é que, por mais que se mexa na parte exterior, material, ou no acesso à cultura e educação, a conflitualidade e a agressividade não desaparecem. Pela primeira vez agora, vai haver uma junção entre a biologia e a genética. Esta possibilidade tanto assusta como entusiasma.
RF: No limite, se se pudesse fazer uma pequena manipulação genética para que não nos matássemos uns aos outros, tu concordarias?
GT: Sim, não me choca. Choca-me mais as pessoas estriparem-se umas às outras. E não percebo as resistências às alterações genéticas porque o homem está sempre a ser alterado – com antibióticos, corações artificiais, etc.. Se alterarem a nossa biologia para as pessoas viverem melhor no seu conjunto, eu concordo.
(Se quiserem continuar a leitura usem os links à direita, "entrevistas on line")