OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
TEMA: TANATOS - PULSÃO PARA A MORTE
A tua alma não compreende a minha..., nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida...(...) Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! Mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes? (...)
Amanhã... Terrível! Seremos velhos... A carne amolecida, já não desejará a carne (...) O foco da vida, apagado, não inflamará os sentidos... A alma, que nunca envelhece, que ama sempre, já não saberá nem poderá amar!... Diante de um corpo encarquilhado e frio, eu recordarei esse mesmo corpo quando ele era fogo... mármore... mármore que ardia... Recordarei prazeres estonteantes em horríveis despojos... Morrerei de sede, junto da fonte onde outrora tanta vez bebi a vida a haustos largos... Recordar é morrer... E eu não tenho coragem para morrer desta maneira... Não tenho! Não hei-de morrer assim! (...) A minha alma é diferente de todas as outras almas!...
p. 49
Se Marcela pensasse como eu, podíamos ser tão felizes ... tão felizes... Morrer nos seus braços... a beijar-lhe a boca... a morder-lhe os seios... Morrer com ela... com os nossos corpos entrelaçados... num êxtase supremo dos sentidos... da alma prestes a evolar-se... (...)
Mas ela não pensa como eu... ela pensa como todos... Ela gosta da vida... da vida... da vida... da vida!... (...)
- Pede-lhe... pede-lhe que consinta... que me salve desta tortura atroz... que morra comigo... Pede-lhe! Pede-lhe!..
pp. 49-50
Empurrei-o para diante dum espelho (...)
- Contempla a tua fisionomia... Vês? Vês? Tens na tua frente a imagem da loucura
p. 50
- Se eu pudesse – murmurou num tom vago – se eu lhe pudesse provar o meu amor... Mas não encontro nada... (...) É terrível... querer demonstrar a verdade e não poder... não poder...
p. 66
Eu não sofro só por isso, não... Ontem arranquei um cabelo branco. É a velhice... o «fim» que se anuncia...
p. 66
Tudo estava mal.
Quando uma ideia se apodera de um cérebro doente, só a custo perderá a sua fixidez.
p. 69
A sala estava profusamente iluminada; flores por toda a parte, os pesados reposteiros de veludo dourado, corridos. Obrigou-a a entrar. (...) Ouve-me, compreende-me, e não tenhas medo: vou despedaçar a obra-prima do teu rosto... torná-lo uma cicatriz hedionda, onde não se conheçam as feições... sem olhos... sem lábios;... Vou queimar os teus seios... sujar para sempre a brancura imaculada da tua carne... E assim, um monstro repelente, continuarei a amar-te, amar-te-ei muito mais, porque todo o tempo será para ver a tua alma... a tua querida almazinha (...) Já não recearei o tempo... o tempo não envelhece um corpo chagado... a morte não o desfeia (...) Vês... vês como vamos ser venturosos? E, numa alucinação, num delírio de loucura, correu a prateleira... pegou num frasco...
Marcela, aterrorizada, ainda sem perceber, tentava fugir, encontrar uma saída, chorava e gritava...(...)
Isto é vitríolo... vou-to lançar ao rosto... espalhá-lo pelo teu corpo... Vou-te matar o corpo para dar mais vida à alma...(...)
Miserável! És como as outras... Gostas de ser bonita... Gostas de excitar os homens... Devassa...
pp. 73-76
...ululou um uivo despedaçador... apanhou o frasco... emborcou-o...
p. 76
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
TEMA: TANATOS - PULSÃO PARA A MORTE
A tua alma não compreende a minha..., nem a tua, nem a de ninguém. Tenho horror à vida...(...) Que ando a fazer neste mundo? O mesmo que as outras pessoas, bem sei... Ah! Mas é justamente isso que me aterra, que me horroriza... Vivo como todos, à espera da velhice, percebes? À espera da morte, compreendes? (...)
Amanhã... Terrível! Seremos velhos... A carne amolecida, já não desejará a carne (...) O foco da vida, apagado, não inflamará os sentidos... A alma, que nunca envelhece, que ama sempre, já não saberá nem poderá amar!... Diante de um corpo encarquilhado e frio, eu recordarei esse mesmo corpo quando ele era fogo... mármore... mármore que ardia... Recordarei prazeres estonteantes em horríveis despojos... Morrerei de sede, junto da fonte onde outrora tanta vez bebi a vida a haustos largos... Recordar é morrer... E eu não tenho coragem para morrer desta maneira... Não tenho! Não hei-de morrer assim! (...) A minha alma é diferente de todas as outras almas!...
p. 49
Se Marcela pensasse como eu, podíamos ser tão felizes ... tão felizes... Morrer nos seus braços... a beijar-lhe a boca... a morder-lhe os seios... Morrer com ela... com os nossos corpos entrelaçados... num êxtase supremo dos sentidos... da alma prestes a evolar-se... (...)
Mas ela não pensa como eu... ela pensa como todos... Ela gosta da vida... da vida... da vida... da vida!... (...)
- Pede-lhe... pede-lhe que consinta... que me salve desta tortura atroz... que morra comigo... Pede-lhe! Pede-lhe!..
pp. 49-50
Empurrei-o para diante dum espelho (...)
- Contempla a tua fisionomia... Vês? Vês? Tens na tua frente a imagem da loucura
p. 50
- Se eu pudesse – murmurou num tom vago – se eu lhe pudesse provar o meu amor... Mas não encontro nada... (...) É terrível... querer demonstrar a verdade e não poder... não poder...
p. 66
Eu não sofro só por isso, não... Ontem arranquei um cabelo branco. É a velhice... o «fim» que se anuncia...
p. 66
Tudo estava mal.
Quando uma ideia se apodera de um cérebro doente, só a custo perderá a sua fixidez.
p. 69
A sala estava profusamente iluminada; flores por toda a parte, os pesados reposteiros de veludo dourado, corridos. Obrigou-a a entrar. (...) Ouve-me, compreende-me, e não tenhas medo: vou despedaçar a obra-prima do teu rosto... torná-lo uma cicatriz hedionda, onde não se conheçam as feições... sem olhos... sem lábios;... Vou queimar os teus seios... sujar para sempre a brancura imaculada da tua carne... E assim, um monstro repelente, continuarei a amar-te, amar-te-ei muito mais, porque todo o tempo será para ver a tua alma... a tua querida almazinha (...) Já não recearei o tempo... o tempo não envelhece um corpo chagado... a morte não o desfeia (...) Vês... vês como vamos ser venturosos? E, numa alucinação, num delírio de loucura, correu a prateleira... pegou num frasco...
Marcela, aterrorizada, ainda sem perceber, tentava fugir, encontrar uma saída, chorava e gritava...(...)
Isto é vitríolo... vou-to lançar ao rosto... espalhá-lo pelo teu corpo... Vou-te matar o corpo para dar mais vida à alma...(...)
Miserável! És como as outras... Gostas de ser bonita... Gostas de excitar os homens... Devassa...
pp. 73-76
...ululou um uivo despedaçador... apanhou o frasco... emborcou-o...
p. 76
[Imagem: Mário Tendinha, Fetiche]
Sem comentários:
Enviar um comentário