Nasci no dia 9 de Janeiro de 1908, às quatro horas da manhã, num quarto de móveis lacados a branco que dava para o Bulevar Raspail. Nas fotografias de família, tiradas no Verão seguinte, vêem-se senhoras ainda novas, de vestidos compridos e chapéus emplumados com penas de avestruz, e senhores de palhinhas e panamás, sorrindo para um bebé: são meus pais, meu avô, minhas tias, meus tios e sou eu. Meu pai tinha trinta anos, minha mãe vinte e um, eu era a primeira filha. (...)
Em casa, o menor incidente era alvo de vastos comentários; ouviam de bom grado as minhas histórias, repetiam as minhas graças. Avós, tios, tias, primos, uma família abundante, garantiam a minha importância. Além disso, todo um povo sobrenatural se inclinava para mim com solicitude. Logo que soube andar, a mamã levou-me à igreja; mostrou-me, feitos de cera, de gesso, pintados nas paredes, retratos do Menino Jesus, de Deus, da Virgem, dos anjos, um dos quais, como Louise, se achava especialmente ao meu serviço. O meu céu estrelava-se com miríades de olhos benevolentes. (...)
Protegida, mimada, divertida pela incessante novidade das coisas, era uma menina alegre. No entanto, havia alguma coisa que não batia certo, pois tinha ataques de fúria, atirava-me para o chão, roxa e com convulsões. (...) Berrava tanto e durante tanto tempo que várias vezes no Luxemburgo me tomavam por uma criança mártir. «Pobre pequena», disse-me uma vez uma senhora oferecendo-me um rebuçado. Agradeci-lhe com um pontapé. Este episódio fez rumor; uma tia obesa e com bigode, que escrevia, contou-o na Poupée Modèle. Eu compartilhava da admiração que inspirava a meus pais o papel impresso: através da história que me leu Louise senti-me uma personagem; pouco a pouco, no entanto, comecei a sentir-me envergonhada. «A pobre da Louise chorava às vezes amargamente, lastimando as suas ovelhas», escrevia a minha tia. Louise nunca chorava; não possuía ovelhas e gostava de mim: e como era possível comparar uma menina a umas ovelhas? Suspeitei a partir desse dia que a literatura tem uma relação muito incerta com a verdade.
in Memórias de Uma Menina Bem-Comportada, de Simone de Beauvoir, Círculo de Leitores, Março 1975, pp 7-14
Em casa, o menor incidente era alvo de vastos comentários; ouviam de bom grado as minhas histórias, repetiam as minhas graças. Avós, tios, tias, primos, uma família abundante, garantiam a minha importância. Além disso, todo um povo sobrenatural se inclinava para mim com solicitude. Logo que soube andar, a mamã levou-me à igreja; mostrou-me, feitos de cera, de gesso, pintados nas paredes, retratos do Menino Jesus, de Deus, da Virgem, dos anjos, um dos quais, como Louise, se achava especialmente ao meu serviço. O meu céu estrelava-se com miríades de olhos benevolentes. (...)
Protegida, mimada, divertida pela incessante novidade das coisas, era uma menina alegre. No entanto, havia alguma coisa que não batia certo, pois tinha ataques de fúria, atirava-me para o chão, roxa e com convulsões. (...) Berrava tanto e durante tanto tempo que várias vezes no Luxemburgo me tomavam por uma criança mártir. «Pobre pequena», disse-me uma vez uma senhora oferecendo-me um rebuçado. Agradeci-lhe com um pontapé. Este episódio fez rumor; uma tia obesa e com bigode, que escrevia, contou-o na Poupée Modèle. Eu compartilhava da admiração que inspirava a meus pais o papel impresso: através da história que me leu Louise senti-me uma personagem; pouco a pouco, no entanto, comecei a sentir-me envergonhada. «A pobre da Louise chorava às vezes amargamente, lastimando as suas ovelhas», escrevia a minha tia. Louise nunca chorava; não possuía ovelhas e gostava de mim: e como era possível comparar uma menina a umas ovelhas? Suspeitei a partir desse dia que a literatura tem uma relação muito incerta com a verdade.
in Memórias de Uma Menina Bem-Comportada, de Simone de Beauvoir, Círculo de Leitores, Março 1975, pp 7-14
Eu teria uns 12 ou 13 anos quando me apercebi de um livro de capa branco e lettring carregado a negro rosnando 2º SEXO. O livro estava nas estantes mais altas da biblioteca, ao lado de outros que eu suspeitava ou tinha a certeza que eram "proibidos". A vontade de os ler tinha-se instalado há algum tempo atrás. Já conseguira desviar A Felicidade Conjugal de Tolstói, Um Homem e uma Mulher de Burt Hirschfeld e outros tantos, sem olhar a correntes, épocas ou estilos, apenas à sugestão dos títulos. Mas transportar O 2º Sexo (Factos e Mitos; A Experiência Vivida) pela casa, era demais para mim. Foi então que reparei nas Memórias de Uma Menina Bem-Comportada; sendo da mesma autora, o título seria certamente enganoso, e eu esperava enganar com ele toda a família, ou pelo menos disfarçar o meu recente interesse por certos temas. Na altura não tinha nenhuma referência sobre Beauvoir. Foi com essa ignorância e as hormonas aos saltos que comecei a ler este livro fantástico. Devorei-o. O enredo e as reflexões interessavam-me além de que, durante a leitura, não perdi a esperança de que ela fosse mais explícita em matéria de sexo quando chegasse às memórias da adolescência. Anos mais tarde, quando o reli, dei-me conta de que este é um dos melhores livros de memória da infância. Não me surpreendeu o facto de eu-criança me ter projectado na obra. Beauvoir-escritora, torna crível o pensamento da criança-Beauvoir. Só viria ter a mesma sensação com a leitura de O Primeiro Homem de A. Camus.
Das Memórias fixei Zaza, cuja morte me fez chorar imenso. Simone escreve - no último parágrafo do livro - que durante muito tempo pensou que pagara a sua liberdade com a morte da amiga. Nós continuamos a pagar a nossa liberdade, malgré Beauvoir. "A disputa durará enquanto os homens e as mulheres não se reconhecerem como semelhantes".
[Imagem de Simone Beauvoir via]
1 comentário:
Passei a ser a meus olhos uma personagem de romance. Qualquer intriga romanesca precisava de obstáculos e malogros. Inventava-os.
(Simone de Beauvoir in, "Memórias de uma menina bem comportada")
Livro eterno com que cresci
Parabens
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