9.7.07

Senta-te ao colo


Fatyly, que me dizes coisas destas, senta-te também no colo dele, e escuta:


«Escolhi a teoria anarquista - a teoria extrema como V. muito bem diz - pelas razões que lhe vou dizer em duas palavras.

Fitou um momento coisa nenhuma. Depois voltou-se para mim.

- O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais - em tudo, desde família ao dinheiro, desde a religião ao estado. A gente nasce homem ou mulher - quero dizer, nasce para ser, em adulto, homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês. É todas estas coisas em virtude das ficções sociais. Ora essas ficções sociais são más porquê? Porque são ficções, porque não são naturais. Tão mau é o dinheiro como o estado, a constituição da família como as religiões. Se houvesse outras, que não fossem estas, seriam igualmente más, porque também seriam ficções, porque também se sobreporiam e estorvariam as realidades naturais. (...) Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em vez de outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma. (...)

Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais diferentes (...). Aqui é que era preciso cuidado.»


in Fernando Pessoa, O Banqueiro Anarquista
Ed. Ulmeiro, 1994, pp 14, 23

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