24.1.06

O discurso de Al Gore


Al Gore, antigo vice-presidente dos Estados Unidos, o candidato que aceitou a derrota milimétrica nas Presidenciais que disputou com G.W. Bush, pronunciou a 16 de Janeiro um importante discurso no Constitution Hall, em Washington. Trata-se de um discurso de ruptura com o sistema político e com a própria élite politica americana. Os media silenciaram, omitindo o discurso ou contornando as acusações contra a Administração Bush. Vejam os cuidados do New York Times que, de forma redutora, apenas salienta as críticas ao sistema de escutas secretas. Pelo que li em fóruns, foi/é apenas via internet que os americanos tiveram/têm acesso a esse discurso (as cadeias televisivas não o transmitiram). E fiquei com a impressão de que os media portugueses também se esqueceram de (mencionar e/ou) dar o devido realce a este "documento". Algumas das acusações não constituem novidade mas são graves e, porque se trata de um ex-vice Presidente a confirmá-las, deveriam ser consequentes. Parece-me, de facto, bastante pertinente, a citação de Luther King feita por Al Gore no final do seu discurso: "precisamos profundamente de um novo caminho para além da escuridão que parece fechar-se em torno de nós".


(...) No princípio deste novo ano, o Ramo Executivo do nosso governo foi apanhado a escutar às escondidas um enorme número de cidadãos americanos e declarou arrogantemente que tem o direito unilateral de continuar a fazê-lo sem consideração para com a lei estabelecida promulgada pelo Congresso a fim de impedir tais abusos.

É apropriado que façamos este apelo no dia que o nosso país reservou para honrar a vida e o legado do Dr. Martin Luther King, Jr., que desafiou a América a respirar o ar puro dos nossos antigos valores com a extensão da sua esperança a todo o nosso povo.

Neste preciso Dia de Martin Luther King, é especialmente importante recordar que durante os últimos anos da sua vida, o Dr. King teve as suas ligações telefónicas ilegalmente escutadas — foi um das centenas de milhares de americanos cujas comunicações privadas foram interceptadas pelo governo dos EUA neste período.

O FBI, internamente, classificou King como o líder negro mais perigoso e efectivo do país e jurou fazê-lo cair do seu pedestal. O governo tentou mesmo destruir o seu casamento e pressionou-o para cometer suicídio. Esta campanha continuou até o assassínio do Dr. King.

A descoberta de que o FBI conduziu uma campanha duradoura e extensa de vigilância electrónica secreta destinada a infiltrar os trabalhos internos da Southern Christian Leadership Conference, e a saber os mais íntimos pormenores da vida do Dr. King, ajudaram a convencer o Congresso a promulgar restrições às escutas electrónicas.


(...) Neste momento, ainda temos muito a aprender acerca da vigilância interna da National Security Agency (NSA). O que sabemos acerca destas escutas secretas generalizadas leva-nos a concluir que o presidente dos Estados Unidos tem estado a infringir a lei repetidamente e persistentemente.

(...) Um presidente que infringe a lei é uma ameaça à própria estrutura do nosso governo. Nossos Pais Fundadores estavam certos de que haviam estabelecido um governo da lei e não dos homens.

(...) Um compromisso de abertura, honestidade e responsabilização também ajuda o nosso país e evita erros muito sérios. Recentemente, por exemplo, soubemos, através de documentos classificados que foram recentemente desclassificados, que a Resolução do Golfo de Tonquim, que autorizou a trágica Guerra do Vietnam, foi realmente baseada em informação falsa. Agora soubemos que a decisão do Congresso de autorizar o Guerra do Iraque, 38 anos depois, foi também baseada em informação falsa. A América teria estado numa situação melhor sabendo a verdade e evitando ambos destes erros colossais na nossa história. Seguir a regra da lei torna-nos mais seguros, não mais vulneráveis.

O presidente e eu concordamos numa coisa. A ameaça do terrorismo é inteiramente real. Simplesmente não há dúvida de que continuamos a enfrentar novos desafios na sequência do ataque do 11 de Setembro e que devemos estar sempre vigilantes a proteger nossos cidadãos de danos.

Onde discordamos é que tenhamos de quebrar a lei ou sacrificar nosso sistema de governo para proteger americanos de terrorismo. De facto, fazê-lo dessa maneira torna-nos mais fracos e mais vulneráveis.

Uma vez violada, a regra da lei está em perigo. Se não for travada, a ilegalidade cresce. Quanto maior se tornar o poder do executivo, mais difícil ficará para os outros ramos desempenhar os seus papeis constitucionais.

(...) É este mesmo desprezo pela Constituição da América que trouxe agora a nossa República à beira de uma ruptura perigosa no tecido da Constituição. E o desprezo corporificado nestas aparentes violações em massa da lei faz parte de um padrão mais vasto de aparente indiferença para com a Constituição que está a perturbar profundamente milhões de americanos em ambos os partidos políticos.

Por exemplo: o Presidente também declarou que tem um poder inerente, até aqui não reconhecido, para capturar e aprisionar qualquer cidadão americano que ele sozinho considera ser uma ameaça ao nosso país, e que, não obstante sua cidadania americana, a pessoa aprisionada não tem direito a conversar com um advogado — nem mesmo a argumentar que o Presidente ou os seus nomeados cometeram um erro e aprisionaram a pessoa errada.

O presidente afirma que pode aprisionar cidadãos americanos pelo resto das suas vidas sem um mandado de prisão, sem notificá-los acerca das acusações que impendem contra eles, e sem informar as suas famílias de que foram aprisionados.

Ao mesmo tempo, o Ramo Executivo tem reivindicado uma autoridade anteriormente não reconhecida para maltratar prisioneiros sob a sua custódia de formas que claramente constituem tortura, num padrão que agora foi documentado em instalações dos EUA localizadas em vários países por todo o mundo.

Mais de 100 destes cativos foram confirmadamente mortos enquanto estavam a ser torturados pelos interrogadores do Ramo Executivo e muitos mais foram mutilados e humilhados. Na notória prisão de Abu Ghraib, investigadores que documentaram o padrão de tortura estimam que mais de 90 por cento das vítimas estavam inocentes de quaisquer acusações.

(...) O Presidente também afirmou que tem autoridade para sequestrar indivíduos em países estrangeiros e entregá-los para aprisionamento e interrogatório em nosso nome a regimes autocráticos em países que são infames pela crueldade das suas técnicas de tortura.

Alguns dos nossos aliados tradicionais ficaram chocados por estas novas práticas da parte do nosso país. O Embaixador Britânico no Uzbequistão — um dos países com pior reputação por tortura nas suas prisões — registou uma queixa junto ao seu Ministério acerca da insensatez e crueldade da nova prática americana.(...)

Poderá ser verdadeiro que algum Presidente tenha realmente tais poderes sob a nossa Constituição? Se a resposta for sim, então, sob a teoria pela qual estes actos são cometidos, haverá quaisquer actos que possam ser proibidos? Se o Presidente tem a autoridade inerente para efectuar escutas secretas, aprisionar cidadãos à sua própria vontade, sequestrar e torturas, então o que é que ele não pode fazer?

(...) O mesmo padrão tem caracterizado o esforço para silenciar visões divergentes dentro do Ramo Executivo, para censurar informação que possa ser inconsistente com os seus declarados objectivos ideológicos, e para exigir conformidade a todos os empregados do Ramo Executivo.

Exemplo: Analistas da CIA que discordem fortemente da afirmação da Casa Branca de que Osama bin Laden estava ligado a Saddam Hussein descobriram-se sob pressão no trabalho e tornaram-se temerosos de perder promoções e aumentos de salários.

Ironicamente, foi exactamente o que acontecer a responsáveis do FBI na década de 1960 que discordaram da visão de J. Edgar Hoover de que o Dr. King estava estreitamente ligado aos comunistas.

(...) Na semana passada, por exemplo, o Vice-Presidente Cheney tentou defender as escutas clandestinas da administração aos cidadãos da América dizendo que se tivessem conduzido este programa antes do 11 de Setembro eles teriam descoberto os nomes de alguns dos sequestradores.

Tragicamente, ele aparentemente ainda não sabia que a Administração tinha de facto os nomes de pelo menos dois dos sequestradores bem antes do 11 de Setembro e tinha disponível informação que podia facilmente levar à identificação da maior parte dos outros sequestradores. E com isso, devido à incompetência no tratamento desta informação, ela nunca foi utilizada para proteger o povo americano.

(...) Mas o dano mais sério foi feito ao ramo legislativo. O declínio agudo do poder e autonomia do Congresso nos últimos anos foi quase tão chocante quanto os esforços do Ramo Executivo para alcançar uma expansão maciça do seu poder. (...) O Congresso que hoje temos é irreconhecível quando comparado àquele no qual serviu meu pai. Há muitos distintos senadores e congressistas a servi-lo. Estou honrado por alguns deles estarem aqui neste salão. Mas o ramo legislativo do governo sob a sua actual liderança opera agora como se estivesse inteiramente subserviente ao Ramo Executivo.

Além disso, demasiados membros da Casa e do Senado sentem-se agora obrigados a gastar a maior parte do seu tempo não no debate reflectido das questões, mas sim no levantamento de dinheiro para comprar 30 segundos nas TVs comerciais.

Há duas ou três gerações de congressistas que realmente não sabem o que é uma audiência de supervisão (oversight hearing). Nas décadas de 70 e 80, as audiências de supervisão em que meus colegas e eu participávamos levavam os pés do Ramo Executivo ao fogo — não importava qual partido estava no poder. Mas a supervisão é quase desconhecida no Congresso de hoje.

(...) Além disso, no Congresso como um todo — tanto a Casa como o Senado — o avançado papel do dinheiro no processo de reeleição, a par de um papel agudamente diminuído para a deliberação fundamentada e o debate, produziu uma atmosfera conducente à corrupção institucionalizada difusa (pervasive institutionalized corruption).(...)

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