Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
... 
 Dão-nos um mapa imaginário
 que tem a forma de uma cidade
 mais um relógio e um calendário
 onde não vem a nossa idade
 
 Dão-nos a honra de manequim
 para dar corda à nossa ausência.
 Dão-nos um prémio de ser assim
 sem pecado e sem inocência
 
 Dão-nos um barco e um chapéu
 para tirarmos o retrato
 Dão-nos bilhetes para o céu
 levado à cena num teatro
 
 Penteiam-nos os crâneos ermos
 com as cabeleiras das avós
 para jamais nos parecermos
 connosco quando estamos sós
 
 Dão-nos um bolo que é a história
 da nossa historia sem enredo
 e não nos soa na memória
 outra palavra que o medo
 
 Temos fantasmas tão educados
 que adormecemos no seu ombro
 somos vazios despovoados
 de personagens de assombro
 
 Dão-nos a capa do evangelho
 e um pacote de tabaco
 dão-nos um pente e um espelho
 pra pentearmos um macaco
 
 Dão-nos um cravo preso à cabeça
 e uma cabeça presa à cintura
 para que o corpo não pareça
 a forma da alma que o procura
 
 Dão-nos um esquife feito de ferro
 com embutidos de diamante
 para organizar já o enterro
 do nosso corpo mais adiante
 
 Dão-nos um nome e um jornal
 um avião e um violino
 mas não nos dão o animal
 que espeta os cornos no destino
 
 Dão-nos marujos de papelão
 com carimbo no passaporte
 por isso a nossa dimensão
 não é a vida, nem é a morte
 
                    Natália Correia, in "O Nosso Amargo Cancioneiro
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