Acabo de ler O Violoncelista de Sarajevo de Steven Galloway (um autor/livro que o marcas d'água me fez conhecer). São várias as descrições de percursos, ruas, praças que reconheço, calcorreados pelas personagens. Poderia ilustrar algumas dessas passagens do livro com fotografias que tirei recentemente (talvez o faça noutra altura). A enorme diferença é que eu percorri uma cidade liberta, tranquila, sem ameaças de morteiros e de balas de atiradores furtivos ao virar de qualquer esquina. O que motivou esta leitura foi a possibilidade de conhecer a Sarajevo anterior às marcas que encontrei: a Sarajevo cercada. Numa obra que evoca ainda uma Sarajevo mais distante, inteira, mesmo se nunca imaculada. Através da leitura, pude sobrepor três tempos próximos uns dos outros, do ponto de vista cronológico, e completamente fragmentados, em termos de memória colectiva. centrados num mesmo espaço. Era o que queria. e o livro cumpriu esta promessa (não outras, mais literárias). O espaço físico confunde-se com o espaço psicológico. As feridas, os buracos, a destruição, as barreiras, atingem paredes, casas, ruas, pessoas, como se as últimas fossem feitas da mesma matéria morta e anónima, ou simbólica e singular: um peão, uma casa; um violoncelista, a histórica Biblioteca Municipal (detalhe na foto abaixo). unidos no mesmo destino. o de ruir. com maior ou menor dignidade.
Em O Violoncelo de Sarajevo ninguém sobrevive. mesmo quando o corpo se ergue e aparentemente domina o espaço: o da vida interior e o que o rodeia. Todos foram forçados a vestir outra personalidade. Flecha, a atiradora furtiva que procura defender a cidade, personifica essa deslocação do ser.
«Perceber que a vida é maravilhosa e que não durará para sempre é uma dádiva rara. Por isso, quando Flecha aperta o gatilho e acaba com a vida de um dos soldados que tem na mira, fá-lo não porque queira vê-lo morto - embora não possa negar que quer - mas porque os soldados a privaram, e a quase todas as outras pessoas que vivem na cidade, dessa dávida. O facto de a vida ter um fim tornou-se tão evidente por si mesmo que perdeu todo o significado.» [pp. 20-21]
Pensei então no (pre)conceito moral dominante segundo o qual matar inimigos, em situação de guerra, não é condenável. O direito à vida pode, nesse contexto, ser violado. Mesmo a propósito, leio (via Crítica: blog de filosofia) que Jeff McMahan defende em Killing People a teoria de que as condições em guerra não são pertinentes para definir o que a moralidade permite ou não, e que as justificações para matar pessoas são as mesmas em todos os contextos. Por exempo: em caso de legítima defesa. Todos poderíamos, face à percepção dessa ameaça, vestir a pele de Flecha. ou a de um soldado sérvio. e matar. Nesta obra, McMahan acaba defendendo uma visão que põe em causa a teoria da "guerra justa". Para o autor, na maioria dos casos, é moralmente errado lutar numa guerra... que é injusta. No meu ponto de vista, lutar no Iraque, lutar no Afeganistão, ter combatido nas ex-colónias, seria então imoral. Mas quem pode definir de forma objectiva "a justiça" de uma guerra! Muitos nomearão os ataques no Afeganistão "moralmente" aceitáveis.
Sobre a necessidade de libertação de Sarajevo havia unanimidade. Não obstante, a intervenção da NATO foi adiada. Nos 44 meses do cerco, o terror contra Sarajevo e seus moradores variaram de intensidade, mas o propósito sempre foi o mesmo: infligir o maior sofrimento possível aos civis a fim de forçar as autoridades bósnias a aceitar as exigências sérvias. O Exército da República Srpska cercou a cidade, colocando tropas e artilharia nas colinas circundantes. Civis foram atacados durante quase quatro anos. Estima-se que mais de 12.000 pessoas foram mortas e 50.000 feridas durante o cerco, sendo que 85% das vítimas eram civis.
«- Se ficarmos, vão disparar sobre nós das colinas até estarmos todos mortos (...).
- O mundo nunca permitirá que isso aconteça. Terão que nos ajudar mais tarde ou mais cedo (...) - diz Emina.
Dragan não consegue perceber, pelo tom de voz dela, se acredita naquilo que diz. Não sabe como poderia acreditar. Certamente, ambos vêem a cidade desintegrar-se diante dos seus olhos.» [p. 66]
A justiça tardou. Raramente se discute a imoralidade da observação passiva.
Obras referidas:
- Steven Galloway (2009). O violoncelo de Sarajevo. Lisboa. Editorial Presença
- Jeff McMahan (2009). Killing in War. Hardback
«Perceber que a vida é maravilhosa e que não durará para sempre é uma dádiva rara. Por isso, quando Flecha aperta o gatilho e acaba com a vida de um dos soldados que tem na mira, fá-lo não porque queira vê-lo morto - embora não possa negar que quer - mas porque os soldados a privaram, e a quase todas as outras pessoas que vivem na cidade, dessa dávida. O facto de a vida ter um fim tornou-se tão evidente por si mesmo que perdeu todo o significado.» [pp. 20-21]
Pensei então no (pre)conceito moral dominante segundo o qual matar inimigos, em situação de guerra, não é condenável. O direito à vida pode, nesse contexto, ser violado. Mesmo a propósito, leio (via Crítica: blog de filosofia) que Jeff McMahan defende em Killing People a teoria de que as condições em guerra não são pertinentes para definir o que a moralidade permite ou não, e que as justificações para matar pessoas são as mesmas em todos os contextos. Por exempo: em caso de legítima defesa. Todos poderíamos, face à percepção dessa ameaça, vestir a pele de Flecha. ou a de um soldado sérvio. e matar. Nesta obra, McMahan acaba defendendo uma visão que põe em causa a teoria da "guerra justa". Para o autor, na maioria dos casos, é moralmente errado lutar numa guerra... que é injusta. No meu ponto de vista, lutar no Iraque, lutar no Afeganistão, ter combatido nas ex-colónias, seria então imoral. Mas quem pode definir de forma objectiva "a justiça" de uma guerra! Muitos nomearão os ataques no Afeganistão "moralmente" aceitáveis.
Sobre a necessidade de libertação de Sarajevo havia unanimidade. Não obstante, a intervenção da NATO foi adiada. Nos 44 meses do cerco, o terror contra Sarajevo e seus moradores variaram de intensidade, mas o propósito sempre foi o mesmo: infligir o maior sofrimento possível aos civis a fim de forçar as autoridades bósnias a aceitar as exigências sérvias. O Exército da República Srpska cercou a cidade, colocando tropas e artilharia nas colinas circundantes. Civis foram atacados durante quase quatro anos. Estima-se que mais de 12.000 pessoas foram mortas e 50.000 feridas durante o cerco, sendo que 85% das vítimas eram civis.
«- Se ficarmos, vão disparar sobre nós das colinas até estarmos todos mortos (...).
- O mundo nunca permitirá que isso aconteça. Terão que nos ajudar mais tarde ou mais cedo (...) - diz Emina.
Dragan não consegue perceber, pelo tom de voz dela, se acredita naquilo que diz. Não sabe como poderia acreditar. Certamente, ambos vêem a cidade desintegrar-se diante dos seus olhos.» [p. 66]
A justiça tardou. Raramente se discute a imoralidade da observação passiva.
Obras referidas:
- Steven Galloway (2009). O violoncelo de Sarajevo. Lisboa. Editorial Presença
- Jeff McMahan (2009). Killing in War. Hardback
4 comentários:
este livro interessa-me.
e agora muito mais, depois de ler a tua análise.
csd
Também o li como deves calcular.
E recordei as ruas e avenidas. Bom livro. boa sugestão.
Comecei a ler e é um livro que certamente coloca-nos muitas questões.
Olá leitores! Se existe alguém que leia são vocês ! :)
Enviar um comentário