Numa pequena rua em Neuchâtel, um alfarrabista tem a porta de sua casa aberta. É um convite irresistível. O dia é chuvoso e os livros parecem repousar há uma eternidade naquela sala escura. Ou talvez tenha sido o homem, magro, ligeiramente curvado, sentado ao fundo, lendo sobre a secretária, entre montanhas e planaltos de manuscritos e encadernações amarelecidas, que me despertou a curiosidade. Quais seriam os autores eleitos, que obras coleccionaria aquele suiço amante de literatura? Encontro Corneille, Racine, Victor Hugo, Sartre, Beauvoir, enfim, franceses, mestres! Mas não reconheço muitas obras, leio nomes que me são estranhos... até chegar ao suiço Blaise Cendrars! Li há pouco "Poesia em Viagem" (Assírio & Alvim, 2005) e um longo poema, Les Pâques à New York, ainda viaja comigo e está vivo neste mundo de migrações à escala global:
«(...)
Senhor, a multidão de pobres por quem fizestes o Sacrifício
Está aqui, nos hospícios, cercada e amontoada, como gado.
Enormes barcos negros chegam dos horizontes
E desembarcam-nos, a esmo, nos pontões.
Há italianos, gregos, espanhóis,
Russos, búlgaros, persas, mongóis.
São animais de circo que saltam meridianos.
Atiram-lhes com um pedaço de carne como a cães.
(...)»
Pura coincidência, evoco Cendrars e descubro que nasceu a 1 de Setembro de 1887 (m. 20 Janeiro 1961). Nasceu numa pequena localidade, Chaux-de-Fonds, por onde passei o mês passado. Essa é também a terra natal de Le Corbusier e quis conhecer a primeira casa desenhada pelo arquitecto (em 1912).
Volto a Neuchâtel, estou centrada em Cendrars, e o espaço que lhe é reservado parece um enorme esconderijo. De cócoras, salto prateleiras, da esquerda para a direita, de cima para baixo. E então avisto "Forêt Vierge (A Selva)" de Ferreira de Castro, «roman traduit du Portugais par Blaise Cendrars», editado pela Grasset em 1938. O meu tesouro de viagem é assinado pelo autor e inclui uma introdução que vou transcrever (e traduzir) em parte.
" Foi o meu amigo Paul Prado, eminente paulista, autor de «Ritrato do Brazil», essa síntese, única no seu género, de história e de psicologia, quem primeiro me assinalou «A Selva», um documento extraordinariamente verdadeiro sobre a Amazónia, devido, não ao cinema, mas à pena do grande romancista português Ferreira de Castro.
Penso que foi em 1930, e desde a minha primeira estadia no Brasil, ou seja, já há uma dezena de anos atrás, que ponderei com Paul Prado e outros amigos brasileiros, a possibilidade de traduzir para francês um livro brasileiro sobre a Amazónia, sem conseguir fazer uma escolha entre todas as obras que me davam a ler.
(...)
Em Ferreira de Castro eu encontrei finalmente um escritor que sabia evocar como ninguém as belezas e os horrores da Amazónia, descrever a natureza do trópico, anotar as bizarrias, os caprichos, as extravagâncias que nascem sob este clima de água e de fogo, além de falar ainda dos homens que habitam esta terra, que vivem, que lutam, que sofrem nas clareiras da floresta virgem, os selvagens, os primitivos, os autóctones, os nativos, os «caboclos», os agricultores livres, os operários agrícolas, os colonos, os fazendeiros, mas também os «transplantados» e os emigrantes - e, entre estes últimos, um civilizado como o próprio Ferreira de Castro, que foi para a floresta, não para escrever um livro ou por curiosidade, mas como o mais humilde dos emigrantes portugueses, para aí ganhar o seu pão e que, anos mais tarde, se viu obrigado a escrever o seu famoso romance sobre a Amazónia para se libertar de uma obsessão.
(...)
Na minha opinião, o que provocou o imenso sucesso de «A Selva», traduzida hoje em catorze línguas - a minha tradução em francês chega em último lugar - é a sua profunda humanidade, a sua veracidade, os detalhes vividos que ele relata, as suas descrições cruas e nuas sobre a vida dos pobres «seringueiros», uma ausência completa de comentários que deixam que o facto actue directamente sobre o leitor e uma fidelidade tão escrupulosa às palavras, que o mais pequeno diálogo entre estas gentes de cor simples, primitivos perdidos no mais fundo dos bosques, emociona, toca o coração, é escutado.
(...)
- o português é a língua mais voluptuosa, a mais cintilante da Europa e, como é tradição no seu país, Ferreira de Castro é um brilhante, um ardente estilista. O perigo teria sido querer imitá-lo em francês (...) que, se eu tenho muitas vezes ar de ter traído o autor, nunca traí a alma dos personagens, tanto mais sendo ela tão humilde, e é sobretudo isso que conta neste romance, exótico, mas humano, demasiado humano.
BLAISE CENDRARS
Les Aiguillettes
Forêt des Ardennes
Eté 1938 "
Ferreira de Castro (1898-1974) escreveu «A Selva» em 1930. Segundo nota de rodapé de Blaise Cendrars, [em 1938] seria o escritor mais lido em Portugal, escrevia regularmente para os grandes jornais diários brasileiros que o encarregavam de reportagens na Europa e preparava-se para fazer uma volta ao mundo.
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