17.10.06

AMOR-TE


Já houve tempos em que não foi assim, mas agora não penso muito na morte. ou prefiro não pensar. Não me lembro de temer o nada ou a vida para além da morte. Temo a separação. sentir a fragilidade daqueles que amo. ou passar pela dura aprendizagem de viver a ausência de alguém. Assusta-me a dor, física e psicológica, que associamos a esta passagem, o prolongamento artificial do tempo, pela consciência súbita da preciosidade do momento, ou porque uma máquina nos quer reter, a satisfação das últimas vontades e a concessão de prazeres, estes quase sempre pequenos, comoventes, com que se mascara a tortura da espera. Temo o desespero. não a morte.

Por causa de um episódio particular vivido aos vinte anos, encaro a morte como uma quase-entidade, movida por vontade própria. Como no Sétimo Selo de Bergman, veste negro, e um capuz encobre-lhe o rosto. Quando um familiar meu adoeceu gravemente, há já alguns anos, lembro-me de pensar que esse vulto nos andaria a rondar, e que, como no filme, certamente levaria outras pessoas desprevenidas, antes do jogador que desafiava aos olhos de todos. Sentia medo desses caprichos___ em que acreditava.

A morte gosta de nos surpreender. No entanto, é quando nem damos pela sua chegada que sofremos menos. que a morte não dói. Talvez seja por isso que me assustam as viagens de automóvel mas não sinta muita ansiedade quando viajo de avião. O tempo elástico, curto-súbito, sempre nos protege do galopar das angústias. Padecer de uma doença grave, que se arrasta, nos arrasta, arrasta todos à nossa volta até à despedida, é o pior dos cenários que posso imaginar.

É por isso que não sei o que pensar desta exposição,
Amor-te. Walter Schels e Beate Lakotta lançaram-se num projecto de foto-reportagem que não deixa ninguém indiferente. Procuraram doentes terminais e acompanharam-nos até à morte. O resultado é um conjunto de fotografias, organizadas por pares, retratando essas pessoas "antes de" e após a morte.


A curiosidade mórbida dos autores, ele fotógrafo, ela jornalista do Der Spiegel, pode ser discutida, inclusivé do ponto de vista ético. mas as pessoas fotografadas permitiram certamente esta invasão de privacidade. A exposição está patente no Museu da Água, em Lisboa, de 3 a 28 de Outubro. Leio no blog de Amor-te as perguntas: Como encarar a morte? Consegue ultrapassar o medo e contemplar o seu rosto?

Mas não é a morte que eu vejo. Vejo o tempo curto-súbito-longo entre uma foto e outra, e isso faz-me sofrer. Não me parecem 44 fotografias onde a vida, o amor e a morte se espelham em cada um dos rostos retratados. Eu só vejo dor viva, e depois, uma subtracção. de olhar.

Encarar a morte não é surpreender alguém a fechar os olhos.

Passei por
aqui e espantei-me com Amor-te. Mas, se não for ver a exposição, não é por não aceitar a condição mortal do ser humano ou me impressionar com a pele baça e fria do morto. É por (ainda) resistir à ideia de que o sofrimento faz parte da vida. e não gostar que me violentem, em nome da arte ou de uma qualquer pseudo-sociologia mediática.

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