OBRA: LOUCURA, MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1910
Ed: Ulmeiro, Lisboa, 1994
TEMA: DEFINIÇÕES DE AMOR
Raul: Mas que vem a ser o amor? Uma necessidade orgânica, nada mais. Para obrar, podemo-nos servir de um vaso de loiça; para amar precisamos de um recipiente de carne...
pp. 10-11
Raul: Meu caro, todos nós temos um ideal. (...) Todavia, afianço-te que nele não há nenhuma mulher... não há mesmo ninguém, senão eu. Sou um bicho do mato... Ah! Não sentir ninguém perto de nós... fazer só o que a nossa vontade exige... A família! Que náusea!...
p. 12
Mas sem uma família constituída, não pode haver felicidade completa! - insurgia-me eu. Raul (...) respondia:
- De acordo. Por isso é que me repugna a vida familiar. Eu não quero ser feliz... Ser feliz, seria para mim a maior das infelicidades!... Pobre amigo... Pobre louco...
pp. 12-13
Hoje, compreendo que laborava num erro. A escultura faz corpos: eu faço corpos. A literatura faz almas: tu fazes almas. Se pudéssemos conjugar as nossas suas artes faríamos vida. Felizmente é impossível...
p. 18
Saber quem uma pessoa é, é conhecer a sua alma, penetrar nos seus pensamentos; saber como pensa, como executa. Numa noite, não se pode fazer tanto. A maioria das vezes, nem ao cabo de muitos anos. Por isso, à tua pergunta - «Quem é?» - respondi: - «Não sei». - O seu nome, sei-o: Marcela; a filha da Condessa.
p. 24
Raul era um homem, um artista para mais; uma natureza sensível portanto. O que lhe sucedera, era fatal. O amor não poupa ninguém. As melhores intenções de o desprezar, são inúteis: alfim, lá faz ele sentir s suas influências. No romance da vida de um homem – como em todos os romances – aparece sempre uma mulher, aparece sempre o amor. Afigurava-se-me apenas mais natural que a aventura do meu amigo tivesse sido qualquer coisa de romanesco, e não o prosaico, vulgar casamento.(...)
Somente, confesso, experimentei uma vaga desilusão quando vi o meu amigo descer do seu pedestal de bizarria para a banalidade. Nessa banalidade, ia ser feliz. Eu alegrava-me por consequência.
O casamento foi como todos.
p. 27
«- O matrimónio... - dizia ele muitas vezes – Ah! Como eu abomino essa palavra!... um contrato mascarado com o título de «sacramento que acorrenta inexoravelmente duas vidas; que dá todos os direitos ao homem, nenhuns à mulher!...Amem-se duas criaturas, entreguem-se uma à outra, visto que (...) a intimidade das almas exige a dos corpos; não se sujeitem porém a assinar uma escritura e o mundo considerá-los-à criminosos!!...(...)»
pp. 27-28
Com efeito, para a sociedade, existe uma grande diferença entre «marido e mulher» e «amante e amante». No primeiro caso, é o amor consentido, o amor burocrata, membro da Academia; sério e circunspecto. Resume-se todo no amplexo que o sacramento consente e ordena – na produção dos filhos «crescei e multiplicai-vos!» Os esposos dignos (...) devem ser comedidos no prazer, reservados na loucura: devem refrear os sentidos, abafar os suspiros... O amor dos amantes, é pelo contrário, livre; livre de todas as peias, de toda a hipocrisia. Não tem que guardar reservas: pode beijar bocas, os seios, os corpos todos... É a liberdade na paixão, e como é liberdade, grangeou o ódio da «gente honesta»...
Tudo isto é absurdo... tudo isto é verdadeiro. (...)
É por isso que os esposos que se amam como esposos, se não amam. É por isso mesmo que o marido tem amantes... que a sua mulher lhe segue muitas vezes o exemplo...
p. 30
Raul: Abandonando por algum tempo a escultura, dedicava-se à arte do amor, a mais bela de todas.
p. 31
A sua maneira de amar passou por várias fases: fez de Marcela uma cortesã grega, uma prostituta romana, uma cocotte parisiense...
p. 34
O amor que devia ser um sentimento todo da alma, é um sentimento só dos sentidos. (...) O amor é uma distracção... como o teatro... como as festas de igreja. Ama-se uma mulher porque ela é linda... (...) Pode-se amar uma mulher feia pelos seus vícios estonteantes, perversos...(...)
Ah! eu gosto dos teus beijos... da tua carne... gosto de enlaçar as minhas pernas nas tuas... Mas isso que vale?! O que amo, é a tua alma e essa, seja feio o corpo, será sempre bela...
p. 74
«Só se ama por interesse. Não se ama um corpo disforme». Ele possuía uma criatura ideal; pois bem, destruiria toda a sua beleza (...) Morto o corpo, amaria a alma só com a sua alma.
p. 77
[Imagem: Wlodek Warulik, Provocative, 2006]