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30.10.08

À escuta #78

A - Oh mamã, precisas de mais «espertalidade»!
- «Espertalidade»?
A- Sim, tens que ser mais esperta.
- Mas essa palavra não existe.
A - Existe, existe!
- Vamos ver no dicionário... Olha, não existe.
A - Se não existe, devia existir. «Espertalidade» é ser mais esperto. Como ser burro é ter muita «burrança».

Suze (6)

Dante Gabriel Rossetti
Sancta Lilias


Ah! Mas como ela ficava, a minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante, o seu imenso tédio neurasténico, querendo desertar de si, da sua alma e da sua pele enojada, para sempre!...
E caída num estofo, amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia.
Uma manhã, em Lisboa, acabávamos de almoçar no nosso quarto, com a janela prà Avenida.
Ela fumava Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembrança súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei:
- Tu sabes: não gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é pra dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga. Começo por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles vêm e eu penso que vou morrer de nojo. Vem um, vêm muitos... vêm todos. Então, não sei porquê, sinto um bem-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem; parece-me que nasci pra isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo...
Depois, num riso seco:
- Sinto a volúpia de um cristão às feras...
Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu:
- Que importa isto! É um detalhe...
As outras, as vulgares, bestializavam-se; passada a crise horrível de adaptação, vendiam beijos, como um merceeiro vende arroz, um advogado eloquência, ou um diplomata uma colónia. A Suze, não; era escultada em lava: era alguém.
Prostituta ou esposa, seria sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre só. Pobre Suze!
Alma apolínea, foi esbofeteada por fadistas que têm o nome em crónicas heróicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vómito; e com uma clarividência trágida pressentiu muita vez os haustos da manhã subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara boçal de algum cliente.
Teve amantes ricos, equipagens, e as suas melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de Inverno, como uma confidência, o crepitar da lenha num fogão...
Teve paixões sensuais que a torturavam, foi roubada impunemente muitas vezes, e uma noite em Moscovo - caía neve - velando uma companheira moribunda, sem nada pra empenhar e sem recursos, foi pôr no prego - jóia grotesquíssima! - a própria dentadura da doente que, Deus louvado, era montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite.
É de estoirar a rir - não lhes parece?...
Sabia de cor toda a Comédia humana: viveu toda a comédia humana. Pobre Suze!

Tu, ao menos, não precisaste de ser louca para seres santa: ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa; e através de insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!
(...)
Tu, Suze, sabias bem toda a piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum príncipe Nekhuladoff tentasse redimir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele que te falava de perdão e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justiça, pois bem sabias que é inútil tê-la pra morrer à sede...
-continua-
[fragmentos anteriores]


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

27.10.08

Mal du Depart

Always the perfect, unworthy lover
of the endless voyage and azure ocean,
I shall die one evening, like any other,
without having crossed the dim horizon.

For Madras, Singapore, Algeria, Sfax,
the proud ships will still be setting sail,
but I shall bend over a chart-covered desk
and look in the ledger, and make out a bill.

I'll give up talking about long journeys,
My friends will think I've forgotten at last;
my mother will be delighted: she'll say
"A young man's fancy, but now it's passed."

But one night my soul will rise up before me,
and ask, like some grim executioner, "Why?"
This unworthy trembling hand will take arms
and fearlessly strike where the blame must lie.

And I, who longed to be buried one day
in some deep sea of the distant Indies
shall come to a dull and common death;
shall go to a grave like the graves of so many.


Nikos Kavvadias

O silêncio em «Ferro 3»


O silêncio de Tae—suk
Tae-suk é a personificação do homem e isolado pelo que a sua linguagem é, antes de mais, interior. Adivinhamos monólogos, diálogos interiores, quando o observamos sozinho na sua ocupação quotidiana de invasão gentil de casas, vazias de gente mas habitadas, a ficcionar quotidianos e relações que não lhe pertencem. Tae-suk, no seu silêncio, cria «ligações improváveis». Na linha de pensamento de Rimbaud, e se o gesto for uma forma de escrita, este seu silêncio é profundamente poético.
Para o existencialista Maurice Merleau-Ponty, «esta vida interior é uma linguagem interior». Tae-suk vive na antecâmara da fala. O seu silêncio expressa-se pois, ainda, através dessa afonia, da incapacidade ou recusa voluntária do uso da palavra, que é razão e consequência da ausência de relações de sociabilidade na sua vida. Rejeitando a sociabilidade, a personagem recusa a fusão: com o outro, com a sociedade. O silêncio inicial de Tae-suk é o do sujeito que preserva a «descontinuidade» no devir.
Ocupar casas de desconhecidos é a sua forma peculiar de ligação ao mundo, uma forma que o protege das pessoas reais que ele sabe que são sempre diferentes das suas imagens. Contudo, há sinais de aspiração à partilha, à contaminação: as fotografias que vai tirando, a empatia no luto, e, obviamente, o desejo de salvação da frágil esposa maltratada, Sun-hwa.
O silêncio de Tae-suk é preenchido por olhares e gestos expressivos. É uma expressividade intensa mas que deixa espaço à ambiguidade e ao mistério, pelo que o espectador é levado a agarrar cada olhar, a observar o mínimo gesto, para apreender a personagem.
Mas da mesma forma que, na retórica, uma palavra ou uma frase se pode tornar redundante, até ao encontro com Sun-hwa, o silêncio de Tae-suk é tautológico: é um sistema fechado, anda à volta de si mesmo.
Quando Sun-hwa entra na vida de Tae-suk, a narrativa evolui: o enfoque é colocado na comunicação muda e plena de significação entre dois seres. Ambos passam a assumir um novo papel: são emissores-receptores, portadores de um código quase exclusivo. O desafio para o espectador aumenta. O silêncio reafirma a exigência de atenção, para perceber a parte, a soma ou a subtracção das partes, o significado do todo.
O silêncio dos amantes vive de coreografias, da geografia dos corpos, vive de frases gestuais repetitivas, miméticas, paralelas, sobrepostas, coincidentes (a distribuição dos folhetos, a lavagem da roupa à mão, o cuidado obsessivo posto no arranjo das casas que ocupam, o choro e o consolo mútuo, a surpresa, o temor...). Vive de movimentos suaves (o deslizar do ferro sobre as páginas molhadas, os passos lentos de pés descalços).
Os palcos (informais) destas coreografias são sempre espaços ordenados. O silêncio rejeita o caos.
Na prisão, a encenação do swing com a bola imaginária marca uma viragem. Tae-suk vai silenciar-se até à imaterialidade. Há a metáfora da sombra, como uma réstia de existência, que ele acaba por fazer desaparecer. Será a sua saída/libertação da prisão uma metáfora? Poderá a morte da personagem ter ocorrido nesse momento, que coincide com o desaparecimento da visibilidade do corpo? Nos últimos momentos do filme, Tae-suk é um fantasma que apenas Sun-hwa pode ver. É a visão ou a ficção exclusiva de Sun-hwa. Porém, todos pressentem a sua presença – quiça uma metáfora à impossibilidade do silêncio.

O silêncio de Sun-hwa
Começa por ser um silêncio imposto, um silêncio-mordaça, ao lado do marido.
É também um silêncio que evoca nostalgia (do passado, quando era bela e intocável: a fotografia na moldura evoca uma diva; e a sua nudez na fotografia remete para uma liberdade perdida, o seu olhar frontal representando confiança no futuro; a pose, serenidade).
É um silêncio de contenção de angústia, mesmo no início da relação com Tae-suk (depois, o choro que se solta).
Quando a relação com o amante se desenvolve, o silêncio de Sun-hwa é cúmplice e mimético.
De volta ao marido, o sujeito que impõe o silêncio é ela: o silêncio afirma-se como forma de rejeição do marido e de fidelidade ao amante. É um silêncio de espera, longo e pesado como o tempo que a separa do reencontro com o amante. E é também um silêncio ensandecente, de quem se transfigura em alma ou coração e perde o pé da realidade.

Como cantou Miguel Unamuno:
Recuerda, pues, o sueña tú, alma mia
la fantasia es tu sustancia eterna
lo que no fué;
com tus figuraciones hazte fuerte,
que eso es vivir, y lo demás es muerte


Em Ferro 3, as imagens ditam a forma como decorre a narrativa. Ao espectador é deixada a liberdade de estabelecer o sentido metafórico que essas imagens representam.
Privilegia-se a estética visual em detrimento dos diálogos. Ensaia-se uma linguagem do ícone: por exemplo, através da fotografia omnipresente de Sun-hwa e as transformações que vão ocorrendo nessa representação da personagem. Faz-se também intervir outra linguagem, a musical: o som de Natasha Atlas como metáfora da fusão entre os dois amantes. O silêncio apela ao desejo de uma escuta incessante do murmurar do mundo. Assim, para além da banda sonora do filme, todos os sons (sobre)comunicam sentido: todos os sons dos movimentos corporais, do espaço envolvente, são amplificados.

Ki-duk oferece o prazer de pensar a imagem. O silêncio adquire um valor infinito.
Não penso que exista a intenção de uma «catarse do silêncio» (no sentido de Kierkegaard). Não me parece que a intenção filosófica do realizador seja a de restaurar o valor da palavra num mundo onde a comunicação, de tão profusa, gerou indiferença à mensagem. Quando Sun-hwa diz «amo-te», num simulacro de acto dirigido ao marido - e esta é a única vez que verbaliza algo, o sentido da «palavra» é posto em causa, é desvalorizado, face à certitude do silêncio significante e cúmplice. Para não falar da ineficácia da palavra, quando é usada como instrumento ou arma de conquista do ser (marido) ou da verdade (polícias). Porém, há uma mensagem clara: a ineficácia na comunicação conduz à violência.

Na Coreia do Sul, país de origem de Kim Ki-duk, a população é maioritariamente budista. Afirmava Georges Steiner em The Retreat from the word que, segundo algumas filosofias orientais, budistas e taoístas, alcançar o acto contemplativo mais elevado e puro supõe abandonar a linguagem, as mentiras inefáveis que existem por trás das fronteiras da palavra. A verdade não precisa das impurezas e da fragmentação inerentes ao discurso

Os dois amantes, que nunca fazem o uso da palavra, opõem-se assim à materialidade – da linguagem, do ser. Mas também se opõem ao materialismo: são seres desprovidos de bens económicos; o seu capital é cultural («como pode um licenciado ser marginal?» - questiona o polícia).
Os dois amantes vivem sempre num universo silencioso de observação-contemplação do outro, de si mesmo através do outro, atingindo o mais elevado estádio de compreensão e felicidade. Afastados um do outro, são este verso de Manoel de Barros (in O Livro sobre o Nada): «Tem mais presença em mim o que me falta».
Com os dois amantes, duas categorias difusas, real e ficção, passam a um estado de osmose. Ferro 3 é assim uma grande, imensa, metáfora do amor.

____que provoca o espectador. Porque este filme nos mergulha, por si, num profundo exercício de contemplação. do silêncio.


22.10.08

O Fumo do Meu Cigarro

José Rodrigues
Sem título
Técnica mista s/ cartão - 24,5 x 31,5 cm


O Sol morre lá fora
num deslumbramento,
feérico e bizarro…
e o meu olhar vai seguindo
as espirais caprichosas,
e ondulantes,
do fumo do meu cigarro.

Aconchego mais
a seda esmaecida
que me envolve e não me aquece...
E penso em ti,
e na minha vida
tão partida
e tão diversa!...
Enquanto a fita, cinzenta e leve,
volteia,
se enlaça
e se dispersa!...

E o meu pensamento
vagueia
numa angústia que eu não venço,
oscilando-me
sobre um abismo de incertezas!. .
A noite desce,
desdobrando o seu véu pesado e denso...
E à minha boca cruel
e desdenhosa,
sobe, numa ironia estilizada,
o sabor amargo
e doloroso
duma longínqua posse realizada...
…………………………………………

Que tédio, Senhor, enrola a minha lembrança!
— Nada vem sobressaltar
os meus nervos quietos
e vencidos!
E o meu pensamento
vai seguindo,
obstinadamente,
a vida singular dos meus sentidos!
………………………………………….

Rondas de treva volteiam em redor.
Farta—me aquele ardor
moço e alucinado
que a minha lembrança acordou agora,
nesta sombra esguia
do passado...

Afoga-me a estranha insânia
dum louco desígnio - raro e torturante,..
E fico-me a cismar
na volúpia enfastiada
e nos tédios ruivos
desta hora desolada
e impenitente,
e ante o meu olhar
ensombrado e consciente,
ergueu-se, rácica e impiedosa,
a nostálgica, amorosa
Duquesa de Brabante!...
— essa orquídea altiva e rara
que, numa rebeldia
fidalga e sem remédio,
arrefecia
em horas de extermínio
as horas criminosas do seu tédio!

Judith Teixeira
1925

Judith Teixeira é a única mulher no modernismo português e um caso de safismo literário que a torna expoente de uma deriva original que é uma face autêntica de modernidade artística e de coragem expressional.

20.10.08

Suze #5

Dante Gabriel Rossetti
A Vision of Fiammetta, 1878


«Que horas são? Deve ser quase de madrugada.
Eu bem queria, nestas palavras de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco de método, monografá-la. Mas não posso, não posso.
Tenho aqui na minha mesa de trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho coragem pra escrever, como posso desviar os olhos da névoa abismal dos seus, que me transem de irremediável e me enlouquecem de desejo. Desejo absurdo, que o impossível hiperestesia, e me impregnou célula a célula.
Sinto no corpo todo a carícia opiada dos seus dedos, a sua carne sortílega, embruxada; a sua pele afim da minha, e que com ela dialogava em silêncio, nas horas de esgotamento, rememorando sensações agudas, fulgurantes,...
Vejo-a, vejo-a!
Passa a teoria das nossas noites (em que os seus tiques profissionais me constrangiam) e ela era sempre de uma envolvência fluida, de uma estesia de actriz inconsciente, uma viciosa triste, insaciada, e uma boa e pobre rapariga.
De começo podiam julgá-la artificial, tão estilizada era a sua graça, tanto o seu requinte parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidência. Mas não: viam-na mal. Ela era assim sem esforço, naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E todo o meu trabalho desta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira reconstruir uma obra-prima...
Muitas vezes já, aludi ao seu cinismo. Mas entendam-me: cinismo - disse-o o forçado genial de Reading - é a coragem de dizer as coisas como são e não como deviam ser. E a Suze era assim, quando falava a alguém que a compreendia.
Esses, porém, eram raros, muito raros. Com uma intuição divinatória, balzaquiana, a Suze adivinhava às primeiras palavras o seu caso, lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o dia era, conforme o macho em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar. (...)
Mais flexível que as nuvens são para o vento, o seu proteísmo teatral de prostituta mimava a cada um o seu ideal...»
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

A Vision of Fiammetta



Behold Fiammetta, shown in Vision here.
Gloom-girt 'mid Spring-flushed apple-growth she
stands;
And as she sways the branches with her hands,
Along her arm the sundered bloom falls sheer,
In separate petals shed, each like a tear;
While from the quivering bough the bird expands
His wings. And lo! thy spirit understands
Life shaken and shower'd and flown, and Death
drawn near.
All stirs with change. Her garments beat the air:
10 The angel circling round her aureole
Shimmers in flight against the tree's grey bole:
While she, with reassuring eyes most fair,
A presage and a promise stands; as 'twere
On Death's dark storm the rainbow of the Soul.

18.10.08

Cine' Eco 2008

De 18 a 25 de Outubro, estarei em Seia. É o terceiro ano consecutivo que participo como membro do júri. Vai ser bom reencontrar os lugares e as gentes. E depois, será óptimo para começar a preparar a II edição da extensão do Festival em Aveiro.



Obras a Concurso

17.10.08

À escuta #77

S - Todos os brinquedos são fabricados na China, ... olha esta Barbie, foi feita na China. Porquê?
- Porque as empresas mandam fabricar os brinquedos nos países onde se paga menos aos trabalhadores. Algumas até empregam crianças pequenas, o que é terrível...
S - A sério? Dão trabalho às crianças?
- Sim, apesar de ser proibido.
S (a rir) - Oh meu Deus, eu tenho que ir viver para a China. Quero tanto trabalhar e ter o meu salário!


[A S. tem 8 anos e começou a interessar-se por dinheiro. É muito generosa mas acha que já chega de dar - agora quer vender os colares, pulseiras e anéis que faz. Até há pouco tempo, gostava de ter muitas moedas no mealheiro; agora prefere notas. A vertente mais selvagem do sistema capitalista não parece impressioná-la. Nelson, importas-te de a convidar para umas reuniões do BE? :)]

16.10.08

Negando (dizem eles) se faz tudo duvidoso



A MENTE - Triste de mim, que farei?
CALÍDIO - Se queres conselho, nega, e se não entrega-te.
A MENTE - Como hei-de negar cousa tão sem dúvida?
CALÍDIO - Negando (dizem eles) se faz tudo duvidoso.
A MENTE - Mas não se faz por isso torto do direito, nem direito do torto.
CALÍDIO - Antes que isso se declare, um juíz é suspeito, outro ocupado, outro vagaroso....

in Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)

Pelos trilhos do betão


Apontem na V/ agenda:
Dia 18, 21h30, em Vermoim - Lançamento do primeiro livro de António Castilho Dias

15.10.08

Yael Naim


Ando viciada neste álbum. Ela é uma cantautora franco-israelita. Escutem-na ali ao lado ou aqui.

À escuta #76

A - Os computadores deviam ter outro nome... Assim, sem querer, dizemos sempre uma asneira. Não achas que se deviam chamar «computodores»?

14.10.08

O «Panteão dos Reais Corpos»


"(...) Regressemos a Portugal, e ao ano de 1572 em que, concluídas as obras de construção da capela-mor do mosteiro dos Jerónimos em Belém, se aproximava o soleníssimo momento da transladação dos restos mortais dos monarcas defuntos para aquele que era indiscutivelmente, muito por vontade e determinação de D. Catarina, o «Panteão dos Reais Corpos» da monarquia portuguesa. Não por acaso, reinando seu neto D. Sebastião, parecia pertencer à rainha o protagonismo dos acontecimentos. No dia 2 de Outubro, D. Catarina partiu de Xabregas em direcção ao convento da Esperança de religiosas franciscanas, mais próximo do mosteiro de Belém do que o austero paço que era agora o lugar da sua evidente reclusão, onde aguardou que se ultimassem os preparativos para as exéquias reais.
Finalmente, o mosteiro estava preparado para que se procedesse às cerimónias. A capela-mor luzia os seus magníficos mármores de cor parda, vermelha verde e branca, os majestosos túmulos, os painéis do retábulo da Paixão de Cristo e da Adoração dos Magos, os cristalinos vitrais venezianos encomendados por D. Catarina.
A igreja encontrava-se totalmente paramentada de negro, e no claustro foram levantados trinta altares com frontais e cortinas de tafetá negro, cada um deles com um crucifixo, duas velas e duas tochas. No Domimgo, 12 de Outubro, pela manhã, o bispo de Viseu, D. Jorge de Ataíde, procedeu à consagração do altar da nova capela-mor, e nessa noite a rainha dormiu nas casas que o duque de Aveiro tinha junto do mosteiro. No dia seguinte, dia 13, a rainha deslocou-se ao mosteiro acompanhada por D. Duarte, duque de Guimarães, o embaixador Juan de Borja e muitos outros senhores de título para observar na sacristia da igreja a preparação dos ossos dos reis D. Manuel, D. Maria e D. João III, retirados dos respectivos sepulcros e depositados dentro de uma tumba, em três pequenos caixões de ferro forrados por dentro e por fora de cetim branco assentado com tachas e fechos dourados.
(...)
Mas nem a solenidade de que a cerimónia fúnebre se revestiu obstou a que fosse marcada, também ela, por mais um episódio que evidenciava a insolúvel distância e frieza que separavam D. Catarina do cardeal D. Henrique. (...) Apercebendo-se o cardeal de que as ossadas de seus pais, os reis D. Manuel e D. Maria, depois de retiradas da tumba, eram conduzidas para serem sepultadas ao lado da Epístola, ou seja, à esquerda do altar, considerado liturgicamente menos nobre do que o lado do Evangelho, situado do lado direito, D. Henrique fez saber a D. Catarina do seu desagrado por essa decisão que coubera à rainha. Para o cardeal, ao rei D. Manuel, seu pai, fundador do mosteiro de Belém, cabia o lugar mais digno e simbolicamente relevante na capela-mor, e por isso era-lhe devido ser sepultado ao lado do Evangelho. Foram e vieram recados. Argumentou D. Catarina que custeara as obras do seu bolso, por amor do rei D. João III, seu marido, e por isso se considerava no direito de para ele - e para si própria - escolher o lado do Evangelho.
Do surdo confronto entre ambos acabou por triunfar a vontade do cardeal, «ficando ela [a rainha] muito desgostosa»... .
(...)
Terminaram as exéquias reais pelas duas da tarde do dia 14 de Outubro."

- ou seja, agora mesmo, há 436 anos!


in Buescu, Ana Isabel, Catarina de Áustria Infanta de Tordesilhas - Rainha de Portugal, Edit. A Esfera dos Livros, Novembro de 2007. pp 398-403

12.10.08

Ritournelle de la Faim

«Les dernières mesures du Boléro sont tendues, violentes, presque insupportables. Cela monte, emplit la salle, maintenant le public tout entier est debout, regarde la scène où les danseurs tourbillonnent, accélèrent leur mouvement. Des gens crient, leurs voix sont couvertes par les coups de tam-tam. Ida Rubinstein, les danseurs sont des pantins, emportés par la folie. Les flûtes, les clarinettes, les cors, les trompettes, les saxos, les violons, les tambours, les cymbales, les timbales, tout sont ployés, tendus à se rompre, à s'étrangler, à briser leurs cordes et leurs voix, à briser l'égoïste silence du monde.

Ma mère, quand elle m'a raconté la première du Boléro, a dit son émotion, les cris, les bravos et les sifflets, le tumulte. Dans la même salle, quelque part, se trouvait un jeune homme qu'elle n'a jamais rencontré, Claude Lévi-Srauss. Comme lui, longtemps aprés, ma mère m'a confié que cette musique avait changé sa vie.


Maintenant, je comprends pourquoi. Je sais ce que signifiait pour sa génération cette phrase répétée, serinée, imposée par le rytme et le crescendo. Le Boléro n'est pas une pièce musical comme les autres. Il est une prophétie. Il raconte l'histoire d'une colère, d'une faim. Quand il s'achève dans la violence, le silence qui s'ensuit est terrible pour les survivants étourdis.»

in Ritournelle de la Faim, de Jean-Marie Gustave Le Clézio
Gallimard, 2008, p. 206

Suze #4

Dante Gabriel Rossetti
Design for Pætus and Arria, 1872
Lápis, 18 x 19 cm

Prà Suze, tudo na vida era um detalhe.
Ela que se deu a saborear a tantos homens, duvido bem que conhecesse um ensaísta, espírito de síntese, à Carlyle, que enquanto eu nesta noite de insónia a recomponho, com uma saudade sem esperança, friamente medite um grosso tomo, que deveria assim chamar-se: - A Filosofia de Suze (livro póstumo).
E em subtítulo, de um chique transcendente: - Ensaio sobre a supramulher. Dir-se-ia no futuro: - isso é um detalhe, como outrora se disse: - penso, logo existo, como hoje se diz: - o homem é uma ponte prò Sobre-humano.
Se Eça de Queirós fosse ainda vivo, eu, que nunca o conheci, havia de apresentar-lhe Suze, e juro, juro, que a acharia bem mais subtil, bem mais complexa e humanamente fascinante que o seu extraordinário figurino - Carlos Fradique, dandy e epistológrafo.
Fialho, mais feliz, pôde falar-lhe; viu gestos que valiam máximas, e ouviu-lhe memórias e anedotas bem mais significativas que parábolas. Mas por mais que insistentemente lho pedisse, nunca escreveu sobre ela; recusou-se.
Não posso eu, como quem empalha uma asa, amortalhar o génio de Suze em frases sábias, articular-lhe em sistema as formas típicas, erguer enfim essa arquitectura metafísica, que ficaria na névoa das idades, como um farol pra sempre...
Não, não posso. Sinto ainda correr-me o corpo todo, em ondas lentas, o afago dos seus cabelos, dos seus dedos, que eram vivos, enervantes como línguas...
E não é assim, a arder de desejo póstumo, que eu posso lançá-la à posteridade... De resto, Suze, que era para ti a posteridade? Um detalhe, um detalhe apenas...
Mas quero afirmar que nessa frase - que nem sequer, pra muitos que a beijaram, foi mais que uma ironia sem estilo - se condensa o estoicismo, o galbo heróico, que fez desta parisiense tão estranha, na sua vida de cocotte nobilíssima, uma neta espiritual de Marco Aurélio.
Foi nobre e foi cocotte. Não estranhem.
Viver, pra uma mulher, na sociedade de hoje, é quase sempre prostituir-se. Mesmo as que casam, e que casando amavam os maridos, quantas vezes não sofrem sem desejo um cio incontinente, numa humilhação de prostitutas, até que toda a emoção se lhes estanque e o hálito lhes embote o corpo e o espírito?...
Depois da primeira fase em que a sede de amor lhes doira a vida, quantas não reconhecem no convívio que o seu ídolo moral é um canalha, e que o amoroso é só o macho sórdido, sem delicadeza, sem ternura - contundente, ferocíssimo, legal...
As outras, são apenas fêmeas broncas presas à canga do lar animalmente, ou semiloucas resignadas que um catolicismo castrador perdeu, ou índoles lunares de amorosas esperecendo de martírio e tédio. E, consciente ou inconscientemente, todas vão afinal prostituir-se. Só a moeda difere: nada mais.
Mas se viver, pra uma mulher, é quase sempre prostituir-se, não o é menos afinal pra um homem.
Prostituir-se é deformar, ou anular mesmo, o que em nós há de individual e caracterizante, pela necessidade de captar alguém, patrão ou mestre, rico ou superior hierárquico, e até mesmo o pobre, que nos dá a ilusão de sermos bons e a consideração hipócrita dos outros.
Cada um de nós, ao entrar na aula ou na oficina, no escritório ou na repartição, no salão ou na taberna, é postiço, é convencional, é um outro; ao princípio confrangidamente, através de mil torturas; depois inconscientemente: mecanizado, deformado, quinquilharia andante e cérebro de lixos, contribuindo assim para esse ideal que nos empala, e os moralistas chamam - solidariedade humana.
Era fácil mostrar como, violentando o temperamento, esta prostituição se repercute até nos gestos, na nossa maneira de andar e de vestir. E, isto em todas as classes, porque ninguém é suficientemente forte pra se bastar a si mesmo; todos precisam da consideração dos outros, da opinião pública, e vão vivendo sob a garra do preconceito, que os desengonça e deforma, que os raquitiza e anula, como os saltimbancos às crianças.
Quantos resistem íntegros ao penitenciário que é a vida de hoje em sociedade? Alguns pelo isolamento; - bem poucos dos que ficam.
Não riam portanto ao ouvir que a Suze, a minha pobre Suze, foi nobre e cocotte. Cocotte, sim. Como nós todos. Porque, em suma, eu sou cocotte, tu és cocotte, ele é cocotte...
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

10.10.08

Suze #3

Dante Gabriel Rossetti
Aspecta Medusa, 1867


Aqui começa a feitiçaria, o encantamento em que essa serpentina bruxa me colheu, polarizando o meu desejo prò seu corpo elástico e felino, como se as suas mãos de pianista me corressem na medula, e os seus olhos de névoa me perdessem em hipnose.
De corpo e espírito era flexível como uma chama ao vento.
Horas e horas, com febre, com riso, com desespero, vasculho na memória, recomponho o complexo encanto dessa rapariga que sabia de cor toda a Comédia Humana; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-subtil; cinicamente ingénua, ingenuamente cínica; amoral e heróica, e que caminhava prò seu leito de cocotte com o ar redolente de Desdémona na canção do salgueiro...
Oh! A sua canção do salgueiro, música e versos de Bruant, como eu a trauteio ainda exasperado:

Les ch'veux frisés,
Les seins blasés,
Les reins brisés,
Les pieds usés.

Pierreuses,
Trotteuses,
A's marchent l'soir
Quand il fait noir
Sur le trottoir.


Os cabelos impossíveis, abusivos, excessivos, caíam-lhe nos ombros; a robe empire era ampla e branca, as mangas vibravam em asas de serafim profissional... Era uma aparição de lenda rociada de água Lubin - orvalho caro...
Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um não sei quê de transido, de parado, espécie de caquemono, espécie de bebé enorme, enigmático, aflitivo, como só um caricaturista-poeta criaria, num instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!
Era pálida, pálida, no seu roupão de noite, sem as rosas do maquillage que ela tão subtilmente esmaecia. Pobre Suze!
Nenhum pintor português, desde o Grão Vasco, viu para além do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma máscara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante.
Tu que eu agora vejo como um mármore de desgraça, arrepiado, vestido à toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa misérrima de morgue; tu que tens já talvez no ventre aberto o esverdear levíssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que, depois de tanto venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, - ninguém irá junto do teu cadáver pôr-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo.
Foste um génio incompreendido, Suze. É o único ponto de contacto que tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro.
Mas não é isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhão, a frase-refrém, que tão sinteticamente define a tua graça, o teu génio, o teu vício, o teu desdém:
- Tu sais, ça c'est un détail.
-continua-


«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

Yes, yes, no!


[The Prize, 1963]

«O erotismo, já o referi, é, na minha opinião, o desequilíbrio no qual o ser a si próprio se põe em questão, conscientemente. Num certo sentido, o ser perde-se objectivamente, mas nesse caso o sujeito identifica-se com o objecto que se perde. Se for necessário, posso dizer no erotismo: EU perco-me. Não é esta, certamente, uma situação privilegiada, mas o que se não pode negar é que a perda voluntária implicada pelo erotismo é flagrante.»

in O Erotismo, de Georges Bataille
Ed. Antígona, 1988, pp. 27

7.10.08

Suze #2

Dante Gabriel Rossetti
Lady Lilith, 1864-1868


"Acompanhava-a outra que mal vi, fisgado pelo estranho do seu tipo. Toda a noite, ferozmente, a encarcerei no meu binóculo e ela, exibindo atitudes de indiferença numa galeria intérmina, nem sequer teve o ar de ver-me.
Aborrecia-se com complacência, olhando sem fitar, cumprindo com resignação esse destino de, sobre uma plateia do Porto, num barracão de Folies-Brejeiras, esfolhar a carícia exangue e lambedora das suas mãos de raça.
No meu grupo faziam-se hipóteses. Cocotte? Cançonetista? Talvez seja essa que se estreia amanhã.
Todos a achavam imensamente estranha e alguma coisa feia.
Quando à saída ela passou, compondo um ar abstracto e passo ondeante de serpente-fantasma, excitado e burro, disse não sei que frase escória e ouvi, numa voz de seda que range, essa coisa justa: imbécile!
Deixei de ir ao teatro. Achei a vida toda tão imbecil como eu.
Até que uma manhã Just irrompe no meu quarto e preludia felicíssimo: «Foste um doido em não aparecer». Contou então: o empresário F. apresentara-o, e como eram duas e eu continuava incógnito, apresentou por sua vez o conde C., que ao menos não se arranjava mal. - «A tua, a do conde, chama-se Suzanne. A outra, a minha, é Gaby d'Anjou, é perfeita. Não sei se reparaste: um corpo grego. Há uns poucos de dias que isto nem parece o Porto -».
E partiu num turbilhão de chance, dizendo apenas, quase à porta, que a Suzanne era finíssima, e se tolerava o conde é porque não via melhor e porque, enfim, o Amieiro o não vestia mal.
Como, mesmo escrevendo, estou morto por chegar ao quarto dela, direi já que almocámos a sós dias depois, e nem sei mesmo se comi, porque estendia as mãos em concha aos seus pés magros, prós sentir crispar-se com luxúria ao ranger da seda em folha seca...
Foi rápido e simples. O meu amigo apresentou-me: o conde é lorpa, eu sou fino, ela é fina e ... voilá! "
-continua-

«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

6.10.08

Fontes perenais de eloquência #2

DEVORANTE - És üa fonte perenal de eloquência, nunca te acabarão de esgotar.
BRIOBIS - Pois crê-me que não anda aqui um terço de mim.

in Francisco de Sá de Miranda, Os Estrangeiros (1559)

Reabertura do Cineclube

IRINA PALM de SAM GARBARSKI

O filme-sensação da penúltima edição do Festival de Berlim, com uma interpretação magistral da actriz e cantora Marianne Faithfull, é a história invulgar de Maggie, uma mulher desesperada que vai trabalhar para um sex club sob o pseudónimo de Irina Palm com o intuito de pagar os tratamentos médicos do neto. Um filme cru e um retrato intimista tocante mais do que um acto de voyerismo.

Seguem-se "Os Amores de Astrea e Celadon", a última obra do autor de culto Eric Rohmer, "Segredo de um Cuscuz", de Abdellatif Kechiche, multi-premiado e provavelmente o filme mais consensual do ano, e "Um Homem Perdido", da jovem libanesa Danielle Arbid.

4.10.08

Suze #1


Dante Gabriel Rossetti
La Ghirlandata, 1871-1874


"Não posso dormir. Como há mais de oito dias não recebi carta da Suze, e a minha absurda vaidade se recusa a crer que ela me esqueça, ponho-me a pensar, com uma perversidade triste, que tenho escrito loucuras a um cadáver.
Na última contava ela com uma coragem simples, como o mais fútil incidente, que ia entrar prò hospital pra ser operada. Anunciava-me isto, entre um projecto de vestido gris-taupe, que iria bem à sua tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sobre a gata, a amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar.
Se tivesse sido operada e convalescesse, já decerto me teria mandado um telegrama.
É pois forçoso convencer-me de que a minha pobre Suze - «era uma vez»...
Repito alto para mim mesmo: está morta, está morta a Suze! Logo que o disse alto, todo o meu comportamento de actor o acreditou, e em todo o meu ser essa auto-sugestão ressoou em dobres, agudamente, por essa rapariga de vinte e três anos com quem vivi dois meses.
A morta (é certo, é positivo que morreu) era alta e magra.
Aqui mesmo, no meu quarto, onde certa noite ela tomou chá entre os meus livros, a vejo atirar o chapéu de rendas caras, em que havia heráldicas tulipas, acender com um gesto fino um dos Laferme, correr a mão na testa com o gesto da Duse nas catástrofes supremas, e dar-me fumo e destino e sonho. Aqui mesmo.
Naquele espelho prolongou com um traço de crayon os olhos vagos, ali apalpou as molas do divã, e no toilette atou horas depois, in memoriam, as fitas de seda azul que lhe prendiam a camisa nas espáduas...
(Mas assim não consigo dizer o que ela foi. Preciso calmar a minha febre e começar pelo começo).

Vi-a a primeira vez este Verão, no teatro, e logo a destaquei.
Os seus cabelos de criança escandinava, loiro cendrado e seda palha em que havia reflexos quase brancos, tufavam na testa sob o chapéu preto, descaíam à esquerda, subiam à direita recortando a têmpora em ogiva, inverosímeis como raios de sol de vício, químicos, absurdos... Só depois me convenci de que eram autênticos.
Os olhos eram claros, cinzento de água em névoa; a máscara alongava-se num focinhito sonâmbulo, nariz incorrecto, quase grosseiro; boca grande, acolhedora, de comissuras em pontos de interrogação; e o mento perdia-se na nuvem de tule de um laço, esparso na gola impecável de um costume tailleur azul.
Tinha muito da Sarah em nova: a cabeça de uma madona quattrocento em que vivesse a alma de Montmartre."
-continua-

«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910

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Descubro este escritor português, António Patrício, cuja escrita sofre a influência da estética decadentista do final do século XIX, e decido partilhar com o mundo um dos cinco contos da obra "Serão Inquieto", escritos, como o próprio nome indica, num período nocturno, perturbado, no qual o autor tenta dar um sentido ao real por via da imaginação ou, se quisermos ser mais negros, onde a escrita deixa «fluir» uma loucura. loucura como princípio, loucura-ponte, de um homem-ponte, que não pretende chegar à outra margem.

Começámos hoje a conhecer «Suze». Acho que vale a pena conhecê-la. aos pedaços.