Ah! Mas como ela ficava, a minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante, o seu imenso tédio neurasténico, querendo desertar de si, da sua alma e da sua pele enojada, para sempre!...
E caída num estofo, amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia.
Uma manhã, em Lisboa, acabávamos de almoçar no nosso quarto, com a janela prà Avenida.
Ela fumava Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembrança súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei:
- Tu sabes: não gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é pra dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga. Começo por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles vêm e eu penso que vou morrer de nojo. Vem um, vêm muitos... vêm todos. Então, não sei porquê, sinto um bem-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem; parece-me que nasci pra isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo...
Depois, num riso seco:
- Sinto a volúpia de um cristão às feras...
Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu:
- Que importa isto! É um detalhe...
As outras, as vulgares, bestializavam-se; passada a crise horrível de adaptação, vendiam beijos, como um merceeiro vende arroz, um advogado eloquência, ou um diplomata uma colónia. A Suze, não; era escultada em lava: era alguém.
Prostituta ou esposa, seria sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre só. Pobre Suze!
Alma apolínea, foi esbofeteada por fadistas que têm o nome em crónicas heróicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vómito; e com uma clarividência trágida pressentiu muita vez os haustos da manhã subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara boçal de algum cliente.
Teve amantes ricos, equipagens, e as suas melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de Inverno, como uma confidência, o crepitar da lenha num fogão...
Teve paixões sensuais que a torturavam, foi roubada impunemente muitas vezes, e uma noite em Moscovo - caía neve - velando uma companheira moribunda, sem nada pra empenhar e sem recursos, foi pôr no prego - jóia grotesquíssima! - a própria dentadura da doente que, Deus louvado, era montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite.
É de estoirar a rir - não lhes parece?...
Sabia de cor toda a Comédia humana: viveu toda a comédia humana. Pobre Suze!
Tu, ao menos, não precisaste de ser louca para seres santa: ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa; e através de insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!
(...)
Tu, Suze, sabias bem toda a piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum príncipe Nekhuladoff tentasse redimir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele que te falava de perdão e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justiça, pois bem sabias que é inútil tê-la pra morrer à sede...
-continua-
[fragmentos anteriores]
E caída num estofo, amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa morta, como uma asa ferida nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia.
Uma manhã, em Lisboa, acabávamos de almoçar no nosso quarto, com a janela prà Avenida.
Ela fumava Laferme, devagar, no prazer subtil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembrança súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei:
- Tu sabes: não gosto de falar da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é pra dizer bem... Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga. Começo por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles vêm e eu penso que vou morrer de nojo. Vem um, vêm muitos... vêm todos. Então, não sei porquê, sinto um bem-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem; parece-me que nasci pra isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo...
Depois, num riso seco:
- Sinto a volúpia de um cristão às feras...
Parou. Eu recebi num beijo o fumo do Laferme, e a Suze concluiu:
- Que importa isto! É um detalhe...
As outras, as vulgares, bestializavam-se; passada a crise horrível de adaptação, vendiam beijos, como um merceeiro vende arroz, um advogado eloquência, ou um diplomata uma colónia. A Suze, não; era escultada em lava: era alguém.
Prostituta ou esposa, seria sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre só. Pobre Suze!
Alma apolínea, foi esbofeteada por fadistas que têm o nome em crónicas heróicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vómito; e com uma clarividência trágida pressentiu muita vez os haustos da manhã subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara boçal de algum cliente.
Teve amantes ricos, equipagens, e as suas melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si mesma, ouvia numa noite de Inverno, como uma confidência, o crepitar da lenha num fogão...
Teve paixões sensuais que a torturavam, foi roubada impunemente muitas vezes, e uma noite em Moscovo - caía neve - velando uma companheira moribunda, sem nada pra empenhar e sem recursos, foi pôr no prego - jóia grotesquíssima! - a própria dentadura da doente que, Deus louvado, era montada em oiro... Assim puderam comer aquela noite.
É de estoirar a rir - não lhes parece?...
Sabia de cor toda a Comédia humana: viveu toda a comédia humana. Pobre Suze!
Tu, ao menos, não precisaste de ser louca para seres santa: ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um abatimento ou uma queixa; e através de insultos e torpezas, conservaste puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!
(...)
Tu, Suze, sabias bem toda a piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum príncipe Nekhuladoff tentasse redimir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele que te falava de perdão e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim, irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justiça, pois bem sabias que é inútil tê-la pra morrer à sede...
-continua-
[fragmentos anteriores]
«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910
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