Aqui começa a feitiçaria, o encantamento em que essa serpentina bruxa me colheu, polarizando o meu desejo prò seu corpo elástico e felino, como se as suas mãos de pianista me corressem na medula, e os seus olhos de névoa me perdessem em hipnose.
De corpo e espírito era flexível como uma chama ao vento.
Horas e horas, com febre, com riso, com desespero, vasculho na memória, recomponho o complexo encanto dessa rapariga que sabia de cor toda a Comédia Humana; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-subtil; cinicamente ingénua, ingenuamente cínica; amoral e heróica, e que caminhava prò seu leito de cocotte com o ar redolente de Desdémona na canção do salgueiro...
Oh! A sua canção do salgueiro, música e versos de Bruant, como eu a trauteio ainda exasperado:
Les ch'veux frisés,
Les seins blasés,
Les reins brisés,
Les pieds usés.
Pierreuses,
Trotteuses,
A's marchent l'soir
Quand il fait noir
Sur le trottoir.
Les seins blasés,
Les reins brisés,
Les pieds usés.
Pierreuses,
Trotteuses,
A's marchent l'soir
Quand il fait noir
Sur le trottoir.
Os cabelos impossíveis, abusivos, excessivos, caíam-lhe nos ombros; a robe empire era ampla e branca, as mangas vibravam em asas de serafim profissional... Era uma aparição de lenda rociada de água Lubin - orvalho caro...
Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um não sei quê de transido, de parado, espécie de caquemono, espécie de bebé enorme, enigmático, aflitivo, como só um caricaturista-poeta criaria, num instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!
Era pálida, pálida, no seu roupão de noite, sem as rosas do maquillage que ela tão subtilmente esmaecia. Pobre Suze!
Nenhum pintor português, desde o Grão Vasco, viu para além do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma máscara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante.
Tu que eu agora vejo como um mármore de desgraça, arrepiado, vestido à toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa misérrima de morgue; tu que tens já talvez no ventre aberto o esverdear levíssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que, depois de tanto venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, - ninguém irá junto do teu cadáver pôr-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo.
Foste um génio incompreendido, Suze. É o único ponto de contacto que tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro.
Mas não é isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhão, a frase-refrém, que tão sinteticamente define a tua graça, o teu génio, o teu vício, o teu desdém:
- Tu sais, ça c'est un détail.
-continua-
Quando depois mais de perto a detalhei, achei-lhe um não sei quê de transido, de parado, espécie de caquemono, espécie de bebé enorme, enigmático, aflitivo, como só um caricaturista-poeta criaria, num instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!
Era pálida, pálida, no seu roupão de noite, sem as rosas do maquillage que ela tão subtilmente esmaecia. Pobre Suze!
Nenhum pintor português, desde o Grão Vasco, viu para além do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma máscara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante.
Tu que eu agora vejo como um mármore de desgraça, arrepiado, vestido à toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa misérrima de morgue; tu que tens já talvez no ventre aberto o esverdear levíssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que, depois de tanto venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, - ninguém irá junto do teu cadáver pôr-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo.
Foste um génio incompreendido, Suze. É o único ponto de contacto que tiveste com dezenas de idiotas que eu admiro.
Mas não é isto o que me aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses e se da Morte me falasses, mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhão, a frase-refrém, que tão sinteticamente define a tua graça, o teu génio, o teu vício, o teu desdém:
- Tu sais, ça c'est un détail.
-continua-
«Suze», de António Patrício (in Serão Inquieto), 1910
Sem comentários:
Enviar um comentário