24.5.06

São Paulo

Relato de Paulo José Miranda sobre São Paulo

"Segunda-feira (relato de um recolher obrigatório informal ou o dia em que a cidade que não pára, PAROU, devido aos ataques do PCC – Primeiro Comando da Capital)

Após um fim de semana de violentos ataques a esquadras da polícia, dos bombeiros, autocarros, metro e civis, revoltas em inúmeras prisões, a chegada da segunda-feira e a necessidade dos cidadãos terem de ir trabalhar, levou a que este dia São Paulo tenha assistido ao pior dia da sua história. Nunca os cidadãos desta cidade se tinham sentido reféns do terror, do medo, como nesta segunda-feira. De madrugada inúmeros autocarros e carros foram incendiados, agências bancárias destruídas e havia manchas de sangue espalhadas por muitas partes da cidade. Quando os cidadãos mais pobres se dirigem às paragens de autocarro para irem trabalhar deparam-se com a inexistência de circulação de autocarros. Até ao momento tinham sido destruídos mais de 50 e as empresas não arriscaram enviar mais veículos para as ruas. Devido a isto, o rodízio municipal foi anulado (sistema de circulação de viaturas, por número de matrícula), permitindo que circulasse quem quisesse, independentemente da matrícula do carro. Depois do almoço, numa entrevista na TV, Marcola, chefe do PCC, diz ao director do DEIC, da polícia, que vai matá-lo, que ele pode entrar na sua delegacia para matá-lo, mas este não pode entrar na prisão e fazer-lhe o mesmo. A tensão atinge então a sua máxima amplitude. Ninguém se sente seguro. Os estabelecimentos comerciais fecham suas portas às 3 e meia da tarde. Os serviços públicos também param; os funcionários são enviados para casa. O metro, que de madrugada tinha sido alvo de explosões, deixa de trabalhar. Neste recolher obrigatório informal a casa, São Paulo assiste ao record máximo de fila de carros: 212 km de fila de carros, às 4 da tarde. 212! O método usado pelo PCC nos seus ataques é, fundamentalmente, através de motoqueiros; muitos deles são devedores de dívidas de droga, e se não fizerem esses ataques, morrem. Entre morrer às mãos dos traficantes ou às balas dos policiais, preferem a última hipótese, pois ela ainda pode representar uma esperança, junto do PCC. Outros ataques, são ataques mais cirúrgicos: um dos comandos se aproxima de um policial em particular e dispara a arma na sua nuca, ou nos seus familiares. Em frente a uma padaria, na zona sul da cidade, um policial, com sua mulher ao lado, ajoelhou-se diante de dois comandos e foi executado. Os bandidos comunicam as suas instruções por telemóvel; a maioria vem de dentro dos presídios. Um telemóvel mata mais que um revólver ou que uma AK.
Às 7 da tarde as ruas estão desertas e, a essa mesma hora, o comandante da polícia militar de São Paulo, Sancler, dá uma conferência de imprensa onde acusa os órgãos de comunicação social de exagerar o que estava a acontecer; acusa também os comerciantes de se precipitarem a fechar os estabelecimentos mais cedo e acusa ainda os responsáveis pelas escolas e faculdades de terem tomado a decisão de enviar os alunos para casa e fecharem as portas. Às 9 da noite a cidade está mergulhada num escuro inimaginável. Um escuro que a cidade de São Paulo desconhecia que tinha dentro dela. Na zona norte da cidade, um condomínio onde vivem vários familiares de policiais começa a ser atacado. A troca de tiros continua, as mortes aumentam. Na zona oeste, onde vivo, um homem é baleado neste mesmo instante, não se sabe se policia ou bandido. Numa das zonas mais ricas da cidade, aqui perto, dois bandidos são baleados. São 185 ataques até ao momento. Até ao fim, até ao acordo que o Governo de São Paulo não admite ter feito, serão 200 ataques, mais de 60 autocarros queimados, 52 criminosos mortos, 43 policiais e civis mortos. Os canais de TV mantêm helicópteros a sobrevoar a cidade toda noite, em comunicação com comandantes da polícia, vamos assistindo à noite, a uma imensa noite desconhecida. Um homem, ao fim do dia, de regresso a casa, dizia “estou com medo dessa bandidagem; ninguém sabe quem é quem, essa é que é a verdade”. Num programa de debate, num dos canais, o presidente dos juízes de São Paulo diz que a legislação deve mudar, deve ser mais severa; é a favor da pena de morte. “A nossa democracia não é mais desenvolvida do que a dos EUA.” Por seu lado, o responsável máximo pela investigação policial, Rebouças, diz que “quando o bandido sente que o governo é fraco, fica forte” Oiço o apresentador do programa dizer: FORAM CONVIDADOS PARA O PROGRAMA O SECRETÁRIO DA DEFESA DO GOVERNO DE SÃO PAULO, O GOVERNADOR DE SÃO PAULO E A RESPOSTA FOI “NÃO VAMOS ENVIAR NINGUÉM!” Perante isto, não sei o que dizer disto, sinceramente. O apresentador, profundamente comovido e indignado, diz: ISTO NÃO É CRIME ORGANIZADO É QUADRILHA ORGANIZADA. Julgo excelente esta contra-posição; esta é a diferença entre as cidades de Istambul ou de Hong Kong e a de São Paulo; quadrilha organizada não poderia funcionar num estado organizado, embora crime organizado exista em estados organizados; quadrilha organizada só pode funcionar em estados desorganizados (não identificar estado organizado com país desenvolvido). Não defendo o crime organizado, mas, apesar de tudo ele é um mal menor, menor do que o das quadrilhas organizadas. O crime organizado não afecta o cidadão comum, nem os policiais. O crime organizado é organizado. “Nós temos as leis mais brandas do mundo” , acrescenta o Juiz. Termino com um curioso episódio. No dia das mães, dia 14 de Maio, no fim de semana dos motins, foram liberados 2000 presidiários para visitarem suas mães. Sei que parece piada, mas é verdade. As prisões estão caóticas, a cidade sitiada e 2000 presos vão festejar este dia especial com as mães. Assim que saíram dos estabelecimentos prisionais onde se encontravam, foram directamente ao PCC buscar armas para poderem combater. Dos 39 bandidos mortos, no fim de semana, 15 eram parte desses visitantes de mães. Por conseguinte, 15 só no domingo. Perante tudo isto, entre comédia e tragédia, o problema é que os pensamentos de direita e de esquerda mais radicais começam a emergir, parecendo fazer sentido a quem os escuta. Perante tudo isto, entre comédia e tragédia, é muito difícil pensar contrariá-los, quer á direita, quer à esquerda. A segunda-feira de São Paulo.

NOTA: PCC começou na prisão como time de futebol e chamava-se Comando da Capital. Mais tarde, passaram a ser uma organização de defesa dos direitos dos presos e das suas famílias. Por fim, já enquanto quadrilha, adicionaram o Primeiro, tornando-se o PCC."

Paulo José Miranda
São Paulo, 16 de Maio de 2006


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