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31.12.04

Se eu fosse uma canção

A minha canção. Seria (quase) qualquer uma dos senhores que se seguem:
Mercedes Soza, Lila Downs, Angélique Kidjo, Inti illimani, Paco de Lucia, Vinicius, Jobim, Elis Regina, Caetano, Egberto Gismonti, Jacques Brell, Serge Gainsbourg, Serge Reggiani, Léo Ferré, Julien Clerc, Henri Salvador, Björk, Cat Stevens, Janis Joplin, Lou Reed, Randy Newman, Sting, Pink Floyd, Billie Holiday, Armstrong, Dizzy Gillespie, Gershwin, Cesária Evora, Miriam Makeba, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Jorge Palma, Sérgio Godinho, Madredeus,... (sim, é uma rica mistura!)
Sou absolutamente fiel a estes senhores há muitos anos. Às vezes farto-me de um, esqueço-o por um tempo, mas há sempre um dia em que acordo a cantar uma das suas canções e é urgente ir ouvi-lo.
No meu leque há mais alguns muito "bizarros" como a Magida. E agora também ando numa de Rodrigo Leão, Carla Bruni, Bénabar, Lhasa.
Falta apenas referir os das fotos. É uma preferência partilhada com o Jorge (E. Costello), a Coupon (Chico Buarque), o Pedro (Tom Waits) e o Barão d'Holbster (Piazzolla). A propósito, Barão, conheces um álbum de tangos & milongas do Piazzolla com textos do Jorge Luis Borges? Há lá uma milonga A Don Nicanor Paredes que faz as minhas delícias.
E não é que não goste de Tudo o que eu te dou do Abrunhosa! Ou que não tenha cantado o Atira o pau ao gato e não saiba de cor algumas das canções do Festival, ou não me tenha rido com Um dia de domingo (se é a que eu penso), mas...
A day in life dos Simple Minds, You are the one do Peter Hammil (será a que estou a trautear?), Safe n'wann dos Fingertips, Paranoid Android dos Radiohead, Star (?) e Lilac wine de Jeff Buckley tenho que ouvir para saber se conheço ou reconheço!
Boa música e outras boas coisas para o novo ano!

Se eu fosse um livro


The Clandestine Mind de John Dugdale


O Retrato Chinês resultou num conjunto muito variado de referências a livros. E os livros de eleição das nossas Divas são:
Autores mais referidos
  • de Milan Kundera, A Insustentável Beleza do Ser - para Abuláfia e Boabdil
  • de Somerset Maughan, Servidão Humana - para o Barão d'Holbster, e O Fio da Navalha para mfc
  • de Antoine de Saint-Exupéry, A Cidadela - para o Viajante, e o Princepezinho para a Shadow Dweller

E ainda

  • de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis - Jorge
  • de Bernard Cornwell (era este?), Stonehenge - Cosmicmen
  • qualquer um de Mia Couto - Gotinha
  • de Hernest Hemingway, O Velho e o Mar - Japinho
  • qualquer um de Patrick Süskind - Coupon
  • de Friedrich Wilhelm Nietzsche, Assim Falava Zaratrusca - também o Boabdil
  • de Boris Vian, A Espuma dos Dias - Fernando

outros para todas as idades

  • de Lewis Caroll, Alice no País das Maravilhas - Didas
  • de ? O Livro dos Coelhinhos Suicidas - Pedro

e para todos os condutores

O que é que se pode dizer? Todos fizeram boas escolhas (o Pedro e a Louise também devem ter as suas razões!). E as Divas estão convidadas a exporem neste blogue os motivos por que, se fossem um livro, seriam estes aqui referidos. Talvez nos convençam a ler livros ou autores sempre adiados.

30.12.04

Se eu fosse uma palavra



Depois de quilómetros a ouvir o Existir dos Madredeus, acabei por adormecer ao volante. Não sei se foi a voz doce da Teresa Salgueiro se o violoncelo do Francisco Ribeiro. Mas quando começou A Sombra, mais uma melodia a saber a saudade, foda-se, fechei mesmo os olhos. O Abuláfia estava comigo. Ainda gritou: esquerda volver! mas não foi a tempo.
Estavamos numa encruzilhada. A questão que colocava era se devia deixar o meu bólide de colecção no descampado ou aguardar que passasse alguém que chamasse um pronto-socorro. Este carro é a minha vida. Decidi ir apanhando as peças todas, mesmo sabendo que o meu pé de meia não ia dar para pagar o conserto. O Abuláfia diz que tenho uma maneira de ser muito especial. Mas no que diz respeito a paixões, é ele o obcecado. Deitou-se no chão e começou a ler Angústias de um Professor. Só falava desse livro! É sobre um homem do espaço, que tem a alcunha de Cosmic e que tem uma grande paixão por uma tal de Space, sua aluna.
E nisto, não queria acreditar. Passa a mulher dos meus sonhos mais antigos. Digo-lhe Olá! e ela nada. Grito-lhe "és tu aquela a quem sempre quis dizer Amo-te". Empinou o nariz de uma maneira que parecia querer dizer SIM! mas o rabo mexia-se com um jeito de não. E só nesse momento me caiu uma gotinha do olho. Precisava de algum amparo. Mas nem farinha dele. Até que pensei, se eu fosse uma mulher, que palavras gostaria de ouvir? Corri atrás dela e disse-lhe: Diva, posso ser o teu contrabaixo?
Até hoje.

E se eu fosse outra parte do corpo II


Keith Nicolson

a minha nua senhora emoldurada
em crepúsculo é um acidente*

as sombras que rodopiam são seus alongados dedos de bruxa
seu peito um palco improvisado de preguiça e vontade

retenho nas polpas dos meus dedos
a tensão que aquela parte do meu corpo,
qual indecoroso ser
ameaça revelar

cobarde
precipito-me devagar para o umbigo

imaginável gesto
prendeu-me as mãos

e assim, de mãos atadas
alimento-me do avatar peito


* Os dois primeiros versos são do E.E. Cummings

Se eu fosse uma parte do corpo I


Keith Nicolson

uma parte do meu corpo. toca-me. sinto.
os lóbulos das orelhas, sabes? desce, logo abaixo da orelha, onde inicia o pescoço


porque não me olhas? vira o teu rosto sugo-te o sorriso, arranho-te os dentes
cheira
apaga o cérebro


o meu corpo são ouvidos. a tua língua é música. sentes?

canta.

29.12.04

O meu amigo Philippe


O meu amigo Philippe Griveaud, francês, vivia na Tailândia há cerca de um ano. Sempre gostou de viajar e de trabalhar em países estrangeiros. A Ásia foi um sonho que perseguiu durante muito tempo. A sua ligação profissional e afectiva a Portugal traduziu-se em quase 12 anos de permanência. Toda a família falava português e, numa passagem por Macau, quis que os filhos estudassem na Escola Portuguesa. Este Verão voltou cá para matar saudades. Alugámos uma casa isolada num lugar algarvio e com as nossas famílias e mais amigos estivemos mesmo juntos. Esta foto foi tirada nessa altura. Hoje soube que está dado como desaparecido. No momento do tsunami estava na praia. Em Phuket.

Aguardo o teu telefonema. Depois goza comigo, mas é assim que te vejo:

"Em cada homem sábio, habita um deus. Qual é ele? Não sei, mas é um deus."*
*in Séneca, Cartas a Lucílio, 41, 3-4

Se eu fosse um gesto


René Magritte 1926

Por agora sou apenas um abraço a mim.
se fosse uma aranha, teceria a minha teia e viveria dentro dela.
e o teu gesto que eu queria tanto que fosse de compreensão seria afinal o de levantar o dedo, rasgar a teia, face a todos os outros curvados numa vénia.
eu, Magritte, talvez cedesse finalmente. em sinal de confiança erguia o polegar. tu deixavas cair o lenço e mergulhavas em mim.
Eu, Magritte, por agora, ainda sou outro gesto.
(pedido instante e humilde: sê o meu espelho)

28.12.04

Inocência Perversa


Marcia Lorenzato

No vôo de regresso. Encostado à janela, com um ar aterrado, o meu companheiro de viagem das próximas duas horas e meia. A menina pequenina que é minha filha entre os dois. Ela está feliz por viajar, imita os grandes, pega numa revista, desfolha as páginas e vai comentando "olha uma igreja, olha um avião pequenino, posso pintar?". E depois pergunta de repente "o que é uma bomba? na televisão um dia falaram de uma bomba num avião". O homem da janela suspira forte. Respondo "uma bomba é uma coisa que explode, faz um grande barulho e às vezes parte coisas. se calhar era um filme! seria um filme?". "Acho que era!". Ela continua a pintar. Pergunto ao homem "sente-se bem?". mas ele sentia-se muito mal, sentia um enorme pânico sempre que viajava de avião. Começamos a conversar para distrair, ele vai acalmando. Alguma turbulência e nova crise de pânico. Mão no coração, mão no ombro, já estamos quase a chegar.
À noite, em frente à televisão. O terramoto, o maremoto. Milhares de mortos, imagens que nos impressionam. Levo as crianças para o quarto tarde demais. E a pergunta surge "era um filme?".
Não sei.
Como dizer-lhe que às vezes somos pequenos demais. e que, às vezes, somos pequenos demais mesmo para aqueles que amamos.
Lamentamos as desgraças alheias, tememos por nós. Evadimo-nos. Um filme. Amanhã vai ser um filme. Queremos manter a inocência. Os homens não são maus, a natureza não é má. Existem apenas medos que se distraem com conversas e a mão no ombro.
Vamos dormir. serenos.

20.12.04

Guardem bem o meu blogue


Doisneau - Musicien in the rain

Caras divas, digo, caros leitores, guardem bem o meu blog'inho durante esta semana em que estarei ausente .
Para que ele não se molhe, já arranjei um senhor. Ele passou, e não sei se foi por causa da boina, mas percebi logo que gostava de música. Olhei para ele daquela maneira. Disse-me que sim.
Mas depois, quem vai cuidar dele? É preciso alimentá-lo, dar-lhe uns mimos. A Elis Regina, porque não sabia rezar, mostrava o olhar, o olhar. Como eu não posso olhar, não sei como vos pedir.
Decidi então fazer-vos uma proposta. que também pode servir como um jogo para este Natal. Já ouviram falar do Retrato Chinês? Um grupo decide que se vai falar de uma determinada pessoa mas não dão essa informação a um dos seus membros; este tem que adivinhar de quem se trata colocando perguntas projectivas: se ela fosse um livro, se ela fosse um animal, etc., qual seria?
Nos estudos (qualitativos) de mercado utiliza-se muitas vezes este jogo como técnica projectiva para conhecer, por exemplo, o perfil imaginado do consumidor de uma marca. Lembrei-me de o adaptar à série de entrevistas que estou a fazer para o Notícias de Aveiro. No final das entrevistas, peço que preencham um pequeno questionário. E é esse questionário que vos vou deixar aqui. Chamo-lhe Retrato X-Net e é assim:
Se eu fosse...
01. um livro
02. uma canção
03. uma urgência
04. um gesto
05. um ditador
06. um vírus
07. uma palavra
08. uma irritação
09. uma crença
10. uma fobia
11. uma parte do corpo
12. uma cicatriz
13. uma arte
14. um objecto
15. um herói
16. uma paixão
17. um lugar em Aveiro (pois claro!)
18. um sonho
19. um pesadelo
20. um blogue
O que vos vou pedir é que, desta vez, sejam vocês a responder ao questionário. O espaço está aberto às vossas respostas (aqui nos comentários ou via email). Respondam a todas as alíneas ou, se a preguiça fôr grande, apenas às que mais gostarem. No dia 1 do novo ano, os resultados serão apresentados. No dia 3 será divulgado quem é o Grande Vencedor do Retrato X-Net. Espero encontrar nas vossas respostas: originalidade, irreverência, poesia, sentido de humor, espírito crítico, enfim, criatividade.
Bom Natal, minhas Divas!

A Perna Esquerda de Paris


Robert Doisneau

A realidade nem sempre se toca fisicamente. As imagens que tens na cabeça não são frases sequer. A realidade está inscrita numa coisa mais ampla e esponjosa. Nem sempre tocas no que existe, há coisas que existem com força e não são elementos com volume. Percebe os pressentimentos assim.
A realidade desaparece no momento em que um pressentimento avança.


Mais um fragmento deste livro do Gonçalo M. Tavares, que partilho com vocês, antes de ir de férias. à procura das imagens que tenho na minha cabeça. na cidade da luz (?). dizem-me que faz muito frio e que chove muito por lá. Mas talvez a Torre Eiffel não balance tanto. a não ser que eu tenha medo e que o meu medo seja mais forte que a realidade.

19.12.04

Ninguém pagina animais


Anita Kunz

Ninguém pagina animais. Mas vê isto. Imagina que queres transformar um jardim zoológico num livro e fazes de cada animal uma página, que marcas, por exemplo, na pata. Aquele macaco é a página seis: vê a pata. E aquela girafa é a página 36: vê a pata.
Mas há animais que não têm patas e terás que lhes paginar o crânio: utiliza um ferro forte que não se apague com o pó ou outras ninharias: é importante não perderes o número de nenhuma página, porque a literatura é mais importante para os homens que qualquer animal. Faz do zoológico uma biblioteca: quantos livros existem aqui?
in Tavares, Gonçalo M., A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil, Ed. Relógio d' Água, 2004 (pp 35)

À uma hora da manhã


ama o lugar misterioso II

Enfim! só! já nada se ouve senão o rolar de algumas carruagens retardadas e estafadas. Durante uma hora pertence-nos o silêncio, senão o descanso. Enfim! a tirania da face humana desapareceu, e não sofrerei senão por mim próprio.
Enfim! é-me permitido um banho de trevas! Antes de mais nada, duas voltas à fechadura. Parece-me que este girar de chave vai aumentar a minha solidão e reforçar as barricadas que me separam actualmente do mundo.
Vida horrenda! Horrenda cidade! Recapitulemos o dia: contacto com bastantes homens de letras, um dos quais me perguntou se era possível chegar à Rússia por via terrestre (tomava sem dúvida a Rússia por uma ilha); discussão generosa com o director duma revista, que, a cada objecção, respondia: "- Isto aqui é um partido de gente honesta", o que implica que todos os outros jornais são redigidos por malandrões; (...)
Descontente com todos e descontente comigo, bem quisera resgatar-me e insuflar-me um pouco de orgulho no silêncio e na solidão da noite. (...) e vós, Senhor meu Deus! concedei-me a graça de produzir alguns belos versos que me provem a mim mesmo que não sou o último dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo.

in Baudelaire, Charles, O Spleen de Paris - Pequenos Poemas em Prosa, Ed. Relógio d'Água, 1991 (pp 30-31)

18.12.04


Como é que este gesto entrou dentro do meu organismo?

Ando a lêr A Perna Esquerda de Paris do Gonçalo M. Tavares. Decidi partilhar um pouco dessa leitura com vocês, até à saída da entrevista. Leiam até ao fim para ficarem com água na boca. A água faz bem.


Não há gestos femininos ou masculinos, pelo menos feitos com as mãos. Já que as mãos são partes do corpo comuns ao homem e à mulher. Quando muito existirão gestos femininos feitos com os seios, a vagina ou as ancas largas, e existirão gestos masculinos feitos com o orgão sexual masculino.(...) Eis uma teoria.
Bloom disse:
- Tenho vontade de te fazer um gesto absolutamente masculino com a parte do meu corpo que é absolutamente masculina.
Maria Bloom disse que não, estava a ler um livro de filosofia. Estava a acabar. Faltavam três páginas.
- Deixa-me ler estas três páginas. A seguir fornicamos.
Bloom concordou; ficou à espera.
O problema que se colocou aqui é que o livro que Maria estava a ler exigia idas constantes ao dicionário. Para além disso, Maria Bloom ficava, no final de cada frase, a reflectir longamente sobre o que acabara de ler.
Tinha então passado já uma hora e, das três páginas, Maria Bloom só havia lido uma.
Bloom começava a ficar irritado.
Começava, pois, a perder o desejo e a ganhar irritação (sendo que a irritação expulsa fluidos distintos).
Maria, disse Bloom, acabas de ler esse livro ou não?
(não sabem fazer livros mais simples, murmurava, irritado, Bloom).
Maria, sem tirar os olhos do dicionário, que novamente consultava, disse:
- Podes ir despindo-te.
Bloom assim fez. Despiu-se.
Quando finalmente Maria Bloom terminou de ler o seu livro de filosofia, Bloom tinha perdido o desejo e ganho uma constipação. Espirrava abundantemente.
- Esse maldito livro!
Nenhum livro causa constipações, disse Maria.
O desejo não se perde como se perde um objecto sólido. Maria Bloom não procurou o desejo perdido de Bloom pela casa toda.


Como é que este nome Bloom entrou no organismo do Gonçalo? Acordou e o bloom estava lá? Isso não é muito à Gonçalo! Penso na (Honra Perdida de) Katharina Blum do Heinrich Böll... Há muito tempo que não pensava Blum...

17.12.04

Os blogues também podem ser censurados

Recebi esta carta por email, com um pedido de divulgação. É o que passo a fazer.
[Vem isto a propósito do caso Prof. Marcelo Rebelo de Sousa. Nasci e tenho vivido num pequeno concelho (Pombal) do Litoral-Centro (Distrito de Leiria). Não milito em nenhum grupo partidário. Sou um simples cidadão nascido seis anos antes do 25 de Abril de 1974. E como cidadão, ingénuo a pensar que haveria liberdade de expressão e de opinião, criei em Julho passado um "blog" na Internet que pretendia ser um espaço de reflexão e de debate de ideias, com críticas construtivas, sobre o que está a acontecer na minha Terra. Nomeadamente sobre a actividade da respectiva Câmara Municipal e outras instituições.
Esse "blog" num espaço de dois meses registou mais de 6.700 visitas, tendo sido comentado em grande número por outros cidadãos/munícipes. A respectiva autarquia, presidida pelo social-democrata Eng. Narciso Mota, nunca usou o princípio do contraditório. Apesar de reconhecer que alguns dos temas abordados tinham a sua veracidade, alterou alguns procedimentos, dando razão ao que por lá se escrevia. Reconhecendo que o "blog" era incómodo para o Poder (leia-se, Câmara Municipal), o senhor presidente entendeu que a melhor forma de usar o "contraditório" era acabar com o mesmo.
Vai daí, entrou em contacto com a direcção/administração da empresa onde eu trabalhava e denunciou a sua existência, fazendo ver que o "blog" era "gerido" em horas de expediente. A direcção da empresa de imediato, e justificando que aquela situação lesava a relação institucional com a Câmara Municipal, até porque necessitava desta para legalizar algumas situações pendentes, despediu-me. Isto, não argumentando com falta de profissionalismo ou de produtividade. Mas sim, porque o senhor presidente da Câmara assim os contactou para o efeito.
Esclareci a situação e comprometi-me a eliminar de imediato o "blog", o que foi feito e aceite. Precisamente um mês depois, e pelo meio alguns encontros realizados entre o presidente da Câmara e a direcção/administração da empresa, fui novamente confrontado com o despedimento. E perante duas opções: instauração de processo disciplinar ou demissão voluntária, optei pela segunda. Ou seja, a intervenção do senhor presidente da Câmara Municipal de Pombal neste processo é um facto. Tanto o é que um dos seus vereadores afirmou perante algumas pessoas "já acabámos com o blog".
Esta situação é notoriamente idêntica à que aconteceu com o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa. Na sua proporção, obviamente. Mas, com um senão. O meu futuro. Estou desempregado, com duas crianças de 20 meses para criar, casa e carro para pagar. E esposa também desempregada. E tanto mais que, ainda há dias, ouvi da boca de um eventual empregador: "Reconheço que és a pessoa indicada para o meu projecto, mas quando o senhor presidente da Câmara soubesse, caía o Carmo e a Trindade. E eu não quero ter problemas com esse senhor".
É triste que 30 anos depois de uma revolução, ainda haja quem de uma forma nojenta e vergonhosa, censure as vozes discordantes para que estas não expressem livremente as suas opiniões.
Orlando Manuel S. Cardoso
Rua Paul Harris, nº 13 - 1º Esq
3100-502 Pombal
Telef.: 236213594 - 936354363
A democracia não é um dado adquirido, não é uma coisa que os países podem guardar num cofre depois de conquistada. Alain Tourraine dizia mesmo que não existem sociedades democráticas (nem sociedades totalitárias). A democracia é uma abstracção, um modelo. O que pode existir é uma sociedade que aspira ao modelo democrático. E nós queremos que a nossa sociedade aspire a esse modelo. Por isso devemos implicar-nos. Contra abusos de poder. Não milito em nenhum partido político. Mas há pequenos combates que podem também ser nossos. Se todos divulgarmos esta carta nos nossos blogues, ou via email, o que poderá fazer o Senhor Presidente da Câmara do Pombal?
Se desejarem mais esclarecimentos sobre esta situação concreta, utilizem os contactos fornecidos pelo autor da carta.

Entre o silêncio



Quase um mês de blogosfera e estou assim!

Entre o silêncio, algumas vozes. Obrigado, vós.

15.12.04

Para os nossos amores

As fadas são muito bonitas. e voam. usam vestidos de bailarina mas não têm frio. quando tomam banho, a pintura não sai dos olhos e o cabelo não fica molhado.
Se eu tomar banho e a tinta desaparecer, é porque não sou fada.


São as cores. paixão de luz com sonoridades e sentidos. génese da imaginação. Os nossos amores criam as suas histórias, interpretam personagens, viajam no mundo dos sentidos, inventam jogos musicais, cantam, partem para o grande país da fantasia.
A infância e a imaginação criadora. e expressões de arte que ampliam esta inspiração. Música, Expressão Plástica, Dança, Poesia, Teatro.
Nos dois últimos anos abriram na cidade novas escolas ou academias de arte para os mais pequenos. Os nossos amores podem agora fazer a aprendizagem destas expressões de arte de uma forma divertida . o princípio do prazer.
A academia Pequenas Artes foi a pioneira. As suas fundadoras, Sara Pereira e Elisa Valério, fizeram o Conservatório e licenciaram-se em Ensino da Música na UA. A Sara completou o Doutoramento em Composição na Universidade de York em 2001. Idealizaram para Aveiro este espaço de desenvolvimento artístico.
Para que os nossos amores tenham acesso a um mundo mais alargado e cresçam felizes.
Depois só vai ser preciso convencê-los a tomar o banhito... Mas quem não quer ser uma fada?


(A entrevista com a Sara Pereira e a Elisa Valério será publicada no Noticias de Aveiro no próximo mês)

14.12.04

Um olhar à nossa volta

Enterneço-me como uma adolescente com pequenos registos de amor ou saudade ou simplesmente de curiosidade em relação ao meu país. Há 10 anos, em Praga, numa pequena loja de discos, um sujeito com pouco mais de vinte anos veio ter comigo porque queria que eu soubesse que ele andava a aprender a minha língua. numa escola? não tenho dinheiro para isso, comprei umas cassetes e todas as manhãs faço exercícios de português. gosto muito de Portugal. porquê? porque é um pequeno país como o nosso que tem uma grande história e fica no extremo da Europa. Ah! ainda hoje o imagino no seu apartamento pequenino a repetir, com aquele sotaque que até era bonito, o que a voz portuguesa ditava, "co-mo te cha-mas?"...
Anos mais tarde, sozinha nas ruas de Bath, comecei a ouvir uma melodia que me parecia familiar. seria possível encontrar ali Dulce Pontes? segui a música até a encontrar num bar quase vazio ao pé das termas romanas. sentei-me ao balcão e pedi uma bebida qualquer enquanto cantarolava com a Dulce. o empregado anglosaxónico não podia perceber a minha emoção. foi o boss que comprou o CD já há algum tempo. Grrr!
Será este sentimento tão provinciano, próprio dos cidadãos dos países (ou fragmentos de países) periféricos, mas tão espontâneo e natural e invasor e doce, o mesmo que nos leva a decorar janelas com bandeiras nacionais em épocas de campeonatos de futebol? ou o futebol tem razões que o meu coração desconhece?
O futebol gera as suas próprias emoções, é claro. Mas como explicamos que, no passado domingo, o minuto mais televisionado tenha ocorrido às 13 horas em ponto? era o momento dos penaltis e nesse minuto os colombianos cometeram o segundo erro (depois aproveitado por Pedro Emanuel). Segundo a Marktest, a audiência desse minuto foi de 2 101 800 espectadores. todos com os olhos postos no écran.
Mais de dois milhões! De todos os partidos, credos ou clubes desportivos. que poder!
Face à grandeza dos números pareceu-me ainda maior a responsabilidade daqueles que investigam e julgam processos como aquele em que Pinto da Costa estará envolvido.
Mas esses milhões que suspenderam as suas vidas entre as 10:08 e as 13:02 de domingo, fizeram-no pelo país ou pelos volteios do jogo? as duas coisas? que poderosa mistura!
(mais de dois milhões! é ópio.
P.S.: o título deste post foi roubado a um livro do António Alçada Baptista

Supondo que sonhei isto


ama o lugar misterioso

supondo que sonhei isto)
imagina só, quando o dia estremece
tu és uma casa em torno da qual
eu sou um vento---

as tuas paredes não se aperceberão de como
estranhamente a minha vida é curva
já que o melhor que se pode fazer
é espreitar pelas janelas, inobservado

---ouve, pois (acima de todas
as coisas)o sonho não se deixa enganar;
se este vento que eu sou ronda
cuidadosamente em torno desta casa que és tu

o amor sendo assim, ou assim,
as habituais esquinas do teu coração
nunca adivinharão o quanto
o meu maravilhoso ciúme é negro

se a luz florir:
ou o riso cintilar na
casa fechada (em torno e em torno
da qual um pobre vento vai vaguear


in Cummings, E.E., livro de poemas, Ed. Assírio & Alvim, 1999 (pp 91)

P.S.: o nome do lugar misterioso anda algures por aqui, e a foto corresponde às traseiras da casa

13.12.04

Lugar Misterioso II


Vai-se pelo corredor, vira-se à esquerda

... e encontra-se aquele canto. sento-me no banco e os pés deslizam. não queria acomodar-me e despedaçar as esculturas. mas gosto de espreitar pela janela. e depois o globo que cai do tecto ou o candeeiro de pé traçam formas iluminadas de geometria distinta. e as matérias, tijolo, cimento, pedra, madeira, ferro, plástico. o meu banco é de veludo. fecho os olhos e com as pontas dos dedos toco todas as superfícies.
o prémio ainda pode ser seu. aonde fica este lugar?

Flood Dream


Arthur Tress

Sometimes I feel like a motherless child
A long way from home

um pedacinho de duas artes, a de Arthur Tress (que bebem porque passei pela fonte) e a de Van Morrison (nesta canção que eu também adoro cantada pelo Edson Cordeiro). porque me apeteceu.

tantos links, mais palavras. esqueçam. era mesmo para se perderem piscando os olhos. soletrando a melodia.

que desalento o meu país.

12.12.04

Passagem pela China II

Sobre a RPC ou Tschung Hua Jen-Min Kung-Ho (Império Popular das Terras Fluorescentes do Centro).
Segundo João Paulo Oliveira, A República Popular da China vai assumir-se como uma das potências deste novo século. "Quando pensamos na China, pensamos em produtos baratos, de baixa qualidade e cópia. Isso era o que se dizia do Japão nos anos 60 e o Japão é hoje sinónimo de qualidade e de inovação. Daqui a alguns anos a China vai ser tão forte quanto o Japão. A flexibilidade é um ponto forte deles." E a verdade é que o país já começou a demonstrar o seu poder como membro da OMC em disputa com o Japão - por exemplo no que diz respeito às exportações para os EUA. O novo estatuto da China preocupa outros países asiáticos e europeus, que temem perder mercado com a expansão das exportações chinesas.
Mas que desafios tem a China pela frente? Controlar a corrupção - alargada a todos os sectores de actividade; reformar as indústrias estatais - que têm um grau de eficiência muito baixo; criar novas infraestruturas e diminuir o grau de burocracia; e assegurar a unidade política e social - a abertura progressiva fez emergir uma China consumista e mais "liberal", e como re-coordenar o poder central com os novos poderes locais?
Quando João Paulo Oliveira chegou a Cantão encontrou precisamente uma empresa estatal com uma cultura instalada de ineficiência. "Era complicado, uns trabalhavam, outros não. A qualidade nem se discutia, era uma coisa que não havia. Se o produto tinha uma fuga de gás ia na mesma para o mercado". E deparou-se também com o sistema de corrupção generalizado. "O modelo comunista está completamente deturpado. Quem não pertence ao Aparelho não tem oportunidades nenhumas. Mas as empresas têm que pagar facturas de restaurantes e karaokes a quem pertence ou tem ligações no Aparelho. Havia um director comercial que apresentava facturas de 1000/2000 €... e isso representava o salário de vários meses de muitas pessoas!" JPO teve dificuldade em lidar com este tipo de problemas. "Dois anos na China causam mossa".
Para JPO, a abertura da China ao exterior acontece porque já não havia outra alternativa. "A própria sociedade pôde perceber outra forma de vida e isso influenciou as aspirações das pessoas". O seu pensamento insere-se na linha de Eric Hobsbawm para quem a aceitação do comunismo não depende das convicções ideológicas, mas de como julgam as massas o que a vida sob os regimes comunistas faz por elas, e de como comparam a sua situação com a de outros. Não sendo possível o isolamento, o contacto e o conhecimento de outros países torna os seus julgamentos mais cépticos.
Mas JPO salienta que a abertura ao investimento estrangeiro visa essencialmente a aquisição de know-how. "Quase todos os negócios que foram abertos na China a pensar no mercado chinês não resultaram. O lema é - na China mandam os chineses e na China vendem os chineses". E as multinacionais adaptam-se a essas características locais. "Há uma divisão da Bosch que produz para o mercado chinês, mas quem comercializa é uma empresa chinesa. Se não fosse assim, teríamos que entrar no negócio das comissões - eles chamam comissões ao que nós cá chamamos corrupção".
Mas todos os negócios que conheceu, que foram para a China para utilizar mão de obra barata e exportar, tiveram sucesso.
A entrada na OMC pode conduzir a mudanças. A China deve agora diminuir as restrições ao mercado de capitais e melhorar o acesso a produtos e empresas estrangeiras.
Mas o que dizer da necessidade de transformar toda a estrutura de governo e a sua forma de actuação nos diversos quadrantes da sociedade?
JPO considera-se um democrata mas arrisca dizer que "seria um caos se se tentasse democratizar a China" à luz dos nossos modelos. Fala-nos de interiorização de hierarquias. São séculos de subjugação e, por agora, tem a impressão de que as coisas não funcionariam se cada um pudesse escolher o seu próprio destino.
Todos têm papeis "absolutos" atribuídos. Em Hong Kong ouviu uma conferência que não esqueceu. Um americano tentava explicar Tian'anmen. Em 1989, a Praça foi ocupada por um movimento estudantil. Durante dias não houve um único disparo, acabou com milhares de mortos. "A Polícia na China é apenas uma polícia de verificação, não atacou. Mas quando perceberam que tinham perdido o controlo da situação, chamaram o exército. Normalmente a sociedade chinesa não precisa de exército, mas quando ele aparece é terrível. O exército está no extremo, é sanguinário. O resultado foi o que se viu!".
Fica a reflexão.
E Obrigada ao eng° João Paulo Oliveira pela longa entrevista. A partir de hoje no Notícias de Aveiro.

10.12.04

A Segunda Entrevista do Divas & Contrabaixos

João Paulo Oliveira


A entrevista com o Administrador da Vulcano Termodomésticos e Mister Bosch em Portugal saiu hoje no Notícias de Aveiro. Para facilitar a leitura, deixo algumas notas:
  • I - É a introdução
  • II - Entrevista centrada na Vulcano, como Centro de Competência Internacional da Bosch
  • III - Pontos fortes e fracos da região de Aveiro para atrair investimento; propostas de sinegias com as empresas da região; humanizar a Administração; preocupações ambientais
  • IV - Entrevista "marketeer"
  • V - Entrevista de identidade. O percurso pessoal e profissional do eng° João Paulo Oliveira

Façam os vossos comentários aqui ou na coluna do jornal. E obrigada a todos os leitores.


Passagem pela China

1995, Cantão, Sul da China, ou Guangzhou - se utilizarmos a transcrição pinyin dos caracteres chineses, imposta pela China Popular (Mao Tsé-Tung será pois Mao Zedong). O Grupo Bosch faz uma joint venture com a empresa chinesa Guandong Shenzhou para desenvolver e fabricar esquentadores. João Paulo Oliveira revela-se o homem certo para liderar esse projecto. Jiang Zemin está no poder. O que encontra é a herança do maoísmo (ainda) e do anti-maoísmo iniciado por Deng Xiaoping. Neste espaço, registo das impressões que ficaram da China nessa longa marcha que durou dois anos.
Mas antes, alguns dados históricos (centrados no ambiente económico):
1950/51: Campanha para "eliminação dos elementos contra-revolucionários". São lançados sucessivamente os movimentos dos "Três Anti" (contra a corrupção, o desperdício e a burocracia) e dos "Cincos Anti" (contra os subornos, a fraude, a evasão fiscal, a prevaricação e a divulgação de segredos de Estado - visando a burguesia). As empresas são obrigadas a pôr a nu as suas contabilidades e são esmagadas pelos impostos. Campanha de "reforma do pensamento" - visando intelectuais, que serão "reeducados".
Consequências "certificadas": 3000 detenções numa noite, 38000 num mês - apenas em Xangai; 220 execuções públicas num só dia em Pequim; 89000 detenções, das quais 23000 resultaram em condenações à morte, em 10 meses, em Cantão. Cerca de 450000 empresas privadas são sujeitas a inquérito; Um terço dos patrões e quadros são dados como culpados, normalmente por evasão fiscal e punidos - cerca de 300000 com penas de prisão.
O próprio Mao Zedong, em 1957, referindo-se a este período, indicou o número de 800000 contra-revolucionários liquidados.
1953, Nov.: Os patrões são forçados a abrir o seu capital ao Estado.
1955: Os Patrões são obrigados a filiarem-se em sociedades públicas de abastecimento (o racionamento estava generalizado); em Outubro são novamente submetidos a uma investigação geral.
1956: Os patrões não resistem mais de 2 semanas quando, neste ano, lhes "propõem" a colectivização a troco de uma pequena renda vitalícia e, por vezes, o lugar de director técnico nas suas antigas empresas (promessas que a Revolução Cultural renegará).
1958: As empresas do Estado contratam 21 milhões de novos operários (crescimento de 85% num único ano).
1959: Taxa de acumulação de capital pelo Estado - 43.4% do PIB.
1959-1961: "O Grande Salto em Frente". A maior fome da História. Sobremortalidade: entre 20 (número semi-oficial na China) e 43 milhões de pessoas.
1966-1975: A Revolução Cultural. Campanha contra as "Quatro Velharias" (velhas ideias, velha cultura, velhos costumes, velhos hábitos).
1966, Nov.: Autorização para a criação de grupos de Guardas Vermelhos nas fábricas. Aos "rebeldes revolucionários" (na sua maioria estudantes e liceais) juntam-se grupos de trabalhadores industriais - na sua maioria trabalhadores sazonais, tarefeiros, sem garantia de emprego nem protecção sindical - que exigem melhores salários e contratos permanentes; e jovens quadros, outrora punidos por qualquer razão, que entrevêem a ocasião inesperada de uma carreira rápida ou de uma vingança.
1977: Discurso de Deng Xiaoping: " A chave para a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia (...) precisamos de ter conhecimentos e pessoal qualificado (...) Agora parece que a China está uns bons vinte anos atrás dos países desenvolvidos em ciência, tecnologia e educação."
1978, Dez.: Início da era Deng Xiaoping. Reformas privilegiam a economia. Expansão de empresas individuais e privadas.
1986: Pedido de adesão da China ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio (GATT)
1989: Os estudantes de Pequim ocupam a Praça de Tian'anmen. Reinvindicam democracia e têm o apoio da população. Após várias semanas, o poder decide usar a força. Os tanques tomam posição e na noite de 4 de Junho destroem o acampamento de estudantes.
1993, Março: Jiang Zemin é eleito Presidente da República Popular da China.
1999, Nov.: Acordo comercial assinado entre a China e os EUA.
2001, Dez.: China entra oficialmente na OMC (Organização Mundial do Comércio). É a plena integração da China no sistema comercial internacional e o início de uma nova fase de abertura da China ao exterior.
Fontes: (1)Courtois, Stéphane; Werth, Nicolas; Panné, Jean-Louis; Paczkoxski, Andrzej; Bartosek, Karel; Margolin, Jean-Louis, O Livro Negro do Comunismo, Ed. Quetzal, 1997; (2) Hobsbawm, Eric, A Era dos Extremos, Ed. Presença, 1996

5.12.04

Roberto Juarroz, e o Senhor

Para Roberto Juarroz (1925-1995), "o homem é ser que converte o universo em outra coisa. Através da palavra, converte o universo em si, em sua própria transpiração. Como se a mudez do cosmos se metamorfoseasse neste milagre que é a palavra do homem".
Gonçalo Tavares, em forma de homenagem ao poeta argentino, dá o nome de "O Senhor Juarroz" ao seu último livro do Bairro dos senhores. mas não estabelece elos directos entre O que o inspira e a sua escrita. A sua escrita:


Objecto no telhado

A esposa do senhor Juarroz começava a ficar irritada.
- Sobes ou não?!
O senhor Juarroz, porém, nada ouvia e nada via porque estava a pensar:
a invenção da máquina de lavar roupa permite que um cidadão deixe de lavar roupa com as mãos;
a invenção do telefone evita que o cidadão percorra grandes distâncias só para dar um recado;
a invenção do escadote permite que um cidadão não necessite de subir lá acima.


A Chávena e a mão

O senhor Juarroz hesitava em pegar na sua chávena de café porque não conseguia deixar de pensar que não são as mãos que pegam nos objectos, mas sim os objectos que pegam nas mãos. E tal repugnava-o, pois não aceitava que uma simples chávena lhe agarrasse a mão (como o noivo impetuoso agarra nos dedos tímidos da noiva).
Por isso o senhor Juarroz em vez de agarrar na chávena ficava longos minutos a olhar para ela, de modo agressivo.
Mais tarde queixava-se do café frio.


in Tavares, Gonçalo M., O Senhor Juarroz, Ed. Caminho, 2004

4.12.04

O Senhor Tavares


"Há pressupostos literários que não têm nada a ver com a literatura"

Acabo de chegar d' O Navio de Espelhos, onde assisti à sessão de lançamento dos novos livros do Gonçalo M. Tavares. Quem consultou a Agenda Cultural da CMA (agora relançada) pôde lêr que se tratava do lançamento de "O Senhor Brecht" e de "O Senhor Juarroz". Quem já ouviu falar um bocadinho do escritor, não vai ficar surpreendido com a notícia de que, afinal, havia outros dois novos livros: uma compilação de vários livros de poesia num único volume (pelo que, na verdade, ele lançou mais do que 4 livros) e um estranho "A Perna Esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil".
Entrevistei o Gonçalo há duas semanas... É capaz de ser mais exacto dizer que conversamos (o Gonçalo gosta da palavra exactidão - ... e de muitas outras). Inexactamente, sobre a sua escrita e os seus vícios de escritor. Ainda este mês, a entrevista vai ser editada no jornal que conhecem.
Mas hoje foi bom revê-lo e re-ouvi-lo. (eu posso inventar palavras). O Gonçalo Tavares, assim num tom muito rouco e simples, alertou-nos para os falsos pressupostos literários: por exemplo, o de que um bom romance deve ter mais de 100 páginas ou o de que um bom livro de poesia deve ter menos de 100 páginas. ou que não se devem lançar 5 livros num ano. ou o que diz que uma página em branco é um espaço de liberdade.
O Gonçalo violou todos estes falsos pressupostos.
Vamos centrar-nos na falsa liberdade da folha em branco.
Nunca escrevemos em folhas já escritas ou desenhadas ou traçadas . Mas a forma condiciona a escrita. (por exemplo, gosto de pontos finais seguidos de palavras em letra minúscula).(e de parêntesis entre pontos finais). (e os conteúdos variam consoante a forma). O Gonçalo decidiu criar tabelas literárias e escrever sobre elas. Assim, insert tables - número de colunas? - 2, 3, 4 (nós decidimos) - e escreve-se um texto, obrigando o leitor a saltar de coluna em coluna.
E por que é que, num texto, uma frase deve ser consequente da frase anterior? Por que precisamos de uma cadeia de frases que quase podemos numerar, primeira-segunda-terceira-... ?
O Gonçalo Tavares decidiu romper um pouco com esse nosso conforto num dos seus livros (o do Barthes). Através desse exercício de literatura reflectiu e leva-nos a reflectir sobre os condicionalismos da escrita e da leitura. Formas e normas adquiridas. Não inatas. Mas por que parece anti-natural lêr de cima para baixo, ou da direita para a esquerda?
Não li ainda o livro que mais estranhei, ouvi o seu autor. mas já em 1953, Roland Barthes esperava que "O Grau Zero da Escrita" fosse uma testemunha de uma certa dificuldade da literatura, condenada a significar-se sempre a si própria através de uma escrita que não pode ser livre. Cinquenta anos mais tarde, com "A Perna Esquerda de Paris...", Gonçalo Tavares responde a Barthes. Vou precisar de lêr o livro para perceber como, exactamente.
(e, é claro, o livro ainda tem a Perna e o Musil)
Os dois , o Senhor Tavares e Barthes, dizem-nos que não há linguagem escrita sem um rótulo. Por gozo (agrada-me pensar assim), os dois criaram livros difíceis de catalogar.
Por gozo, o Gonçalo Tavares não lança um livro por ano. Lança os que já marinaram tempo suficiente.
E, na adega literária lá de casa, sei que há muitos livros a amadurecer.