Páginas

2.11.14

Não sei se é uma porta nem adivinho as cores da casa, mas bato. Passei nessa rua tantas vezes. Tantas vezes a encenar a mão a fechar e os nós dos dedos a bater. Mas era sempre não. Estou velha, não existem sítios ávidos, só paragens. O amor é uma natureza morta. Tantas vezes a sentir essa força ligeira, ligeira morte, desapercebida. Entretanto a carne e a sua maneira de falar. Mas não foi por isso. Tentei sobre-viver hoje. Sobre-vivo pouco mas ando sempre meia atenta à sobre-vivência e hoje estive de um lado de cá de mim. Bati à porta como quem vende bíblias fingindo que é livre. E afundei abarrotada de vazio. Podia falar do tremor que sentia ou do teu silêncio mas não vale a pena. O tremor pertence-me e o teu silêncio dói. Eu, sentada à beira da mesa, estendida, a dizer que sim, pois que sim, o peso da contingência, mesmo assim à espera
de compreender se haveria um momento em que a doçura entrasse, com ou sem vestes de volúpia. Faço de ti matéria macia e doce e não entrevejo dentes que possam ferir-nos. Mas existe o Bem e o Mal e arrancaste-me o Mal da boca. Eu ia muito longe buscar imagens. Afundei. Não faz mal. Sou rica em abrigos oceânicos. Mas estou aqui. A ver-te libertar-te de mim, sem saber se te dói pouco ou nada.

Toca uma campainha. Eu atendo. Não convém perdermo-nos das contingências. O céu quebra-se vezes demais.


MRF
2007

18.6.14

o que mais desejo é oferecer-lhe tesouros
hoje perdi a cabeça: comprei-lhe um trompete
ele dedilha, sopra, toca toda a noite
uma música que não abre janelas
vagueia dentro de nós em círculos e nos
perde no voo, beija no ar, afaga ambos...

na casa da noite compreenderam
anjos solitários com fome de mim: afastaram-se
as suas costas quentes, húmidas, curvam-se, erguem-se
no comboio, cabeça cansada contra tarde escura
adivinho que está à minha espera e já ouço
alone together, almost blue, lets's get lost

até que exaustos mas leves, asas flectidas, patas recolhidas
fechamos os olhos, adormecemos comigo
deixando a noite imaginada fechar o dia

MRF
2006

17.6.14

partíamos para as nossas vidas e de tempos a tempos, em pequenos compassos, pensava em ti, o que farias naquele preciso momento, se alguém te abraçaria e quem, e com quanta doçura, e depois, depois esperava que fosses feliz e tentava ser feliz nos braços que me eram familiares, sabendo que não há gente feliz sem lágrimas.


MRF
Março 2006

11.6.14

Pois é



Pois é!
Fica o dito e o redito
Por não dito
E é difícil dizer
Que foi bonito
É inútil cantar
O que perdi...
Taí!
Nosso mais-que-perfeito
Está desfeito
O que me parecia
Tão direito
Caiu desse jeito
Sem perdão...
Então!
Disfarçar minha dor
Eu não consigo dizer:
Somos sempre bons amigos
É muita mentira para mim...
Enfim!
Hoje na solidão
Ainda custo
A entender como o amor
Foi tão injusto
Prá quem só lhe foi
Dedicação
Pois é!
Taí!
Nosso mais-que-perfeito
Está desfeito
O que me parecia
Tão direito
Caiu desse jeito
Sem perdão...
Então!
Disfarçar minha dor
Eu não consigo dizer:
Somos sempre bons amigos
É muita mentira para mim...
Enfim!
Hoje na solidão
Ainda custo
A entender como o amor
Foi tão injusto
Prá quem só lhe foi
Dedicação
Pois é! Então!

Futuros amantes


Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa...
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

Passagens

"(...) São sempre os outros que vemos morrer, mas também um dia a morte bate contra nós: um carro que se despista numa curva, um pneu que rebenta (...). Num segundo acabou, tudo aconteceu muito depressa. Há coisas que não podemos controlar.

(...) Um dia não controlamos o que nos acontece e subimos no elevador a caminho do quarto de um motel.

(...) Podíamos escolher sim ou não, mas escolhemos sim. Estamos vivos, conscientes. (...)

A vida pulsando, indiferente ao bem e ao mal. O coração batendo, o sangue circulando, o corpo vivo.
E no entanto a realidade vem sempre outra vez ter connosco. "

in
Teolinda Gersão, PASSAGENS, Sextante Editora, 2014, p. 138

19.5.14

Triunfo do Amor Português

O amor é sempre trágico quando atinge o seu estado mais puro. (Agustina Bessa-Luís)
Os grandes dramas de amor vivem-se na vizinhança da morte. Isso dá imediatamente uma trepidação ao diálogo amoroso que o torna, muitas vezes, insustentável. Essa insustentabilidade do amor é a grande condição da sua dignidade, é o requisito para a sua grandeza. O amor não é uma existência de pantufas; é uma exi...
stência descalço.
Às histórias de amor felizes falta-lhes o ensejo de serem grandes histórias de amor. Muitas delas nascem da rotina, do cálculo, da obrigação... As relações felizes são sempre assustadoramente miseráveis. Mas é possível admirar também a paciência com que as pessoas levam a sua cruz ao calvário, através de um matrimónio baço, de um companheirismo silencioso... O que se admira são outros sentimentos: a paciência, a conformação... (Mário Cláudio)

Não há amor sem culpa. (Agustina Bessa-Luís)
Nos matrimónios baços a culpa não é vivida, não empolga a relação. Então é como se não estivesse lá. Mas está e às vezes rói, rói, rói durante anos e anos e anos até que as pessoas morrem felizes. (Mário Cláudio)


[Entrevista ao escritor Mário Cláudio. Programa BAIRRO ALTO. RTP2. 18-05-2014]

16.5.14

The Neuroscience of Beauty


Why would a part of the brain known to be important for the processing of pain and disgust turn out to the most important area for the appreciation of art?

27.4.14

Vasco Graça Moura

Há muitos anos, a Anabela Mota Ribeiro tinha uma programa televisivo em que entrevistava casais. Vasco Graça Moura e a mulher de então, Rosarinho, foram um dos casais convidados. Nunca mais esqueci a crítica da minha homónima, que se queixava de que ele era demasiado pró-Cavaco (Primeiro-Ministro na altura!?), demasiado, demasiado! E eu a gostar tanto dela. Porque era verdade, era verdade! Mas dep...ois ele começou a falar das filhas e leu alguns poemas que escrevera para elas. Belíssimos! Quanta sensibilidade, quanto amor! Vasco Graça Moura era grande na sua arte e imenso no seu saber humanista e erudito. De resto, preconceito meu, era essa imensa Cultura que me fazia não aceitar a sua associação àquele pequeno poder cinzentão e deprimente (que se perpetua...). E comprava os seus livros e admirava as suas épicas traduções, sempre segura da qualidade, sempre ligeiramente irritada. A morte lava as pequenas fúrias. Estou triste pela sua morte.


As meninas

as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,

a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.
a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.
e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

3.4.14

Manhã

Está a chover a potes, o que não dá jeito nenhum para levar os ténis novos e a t-shirt verde que condiz tão bem, os primeiros presentes de aniversário... Diziam que hoje ia melhorar e é isto! Se tem algum jeito vestir impermeável por cima desta roupa! Mas vá, vamos, já estamos atrasadas... Na rotunda, a nossa saída está tapada por um carro que decidiu estacionar ali. De tempos a tempos, acontece. ...É por ser uma rua estreita, deve ser, não percebem!? Apita e ele sai. Obrigada, pá! Em frente à escola, a Ana ainda não tinha conseguido por a écharpe bem... Mãe, põe! Estamos atrasadas, diz a Sofia! Pára o carro que não dá para o pé ficar no travão enquanto te torces toda para lhe chegar ao pescoço... Olha, deixa estar! Ai é? Até logo, meninas! Avança e estaciona ao pé do mercado. Nada como comprar fruta, legumes e flores pela manhã! Ao entrar, ups, salta que ainda levas um pontapé! O senhor da banca onde vou está em plena acção. Agarra um homem que grita, esperneia, ameaça, sem resultado, que o rapaz é forte e prendeu-o bem. Rua daqui! Apanhado a roubar outra vez! Todos falam. Afinal quem foi apanhado é mesmo mau, só quem não vai à Caixa Geral de Depósitos quando ele vai receber a pensão, é que não sabe. Ficam todos cheios de medo, menos o senhor que o vê sempre, ele não! Mas olha rapaz, diz outro, não é preciso ser herói para pegar nele... Dá-se um empurrão e ele cai logo. Pois, mas tu fugiste, não foi? Vá, vá, mudemos de conversa! Quem deixou aqui o Correio da Manhã? Está toda a gente, incluindo eu, a colocar os sacos com as compras para pesar em cima do jornal. Não importa, diz o mesmo-assim-herói, esse jornal é só escândalos! É, não é? Está a perguntar-me? Pois, não é bem a melhor referência de jornalismo. Ora, diz as verdades, isso é que é, contrapõe bem alto uma senhora. Pois! Que os outros escondem as verdades e esse, pelo menos, diz as coisas como elas são! As narinas abrem e fecham, a senhora ficou irada em dois tempos, olha para mim com ar de "deves achar que me enganas". Paga e diz que sim. Bom dia e vai à banca das flores. Levo estas. Pois nem acredita, há uma senhora que compra sempre essas flores, dessa cor, há várias semanas. É que parece que nem gosta de mais nada, santo Deus! Quer que corte o pé ou a altura está boa? Corte um bocadinho! Estas aguentam-se bem se a água estiver fresquinha. Com este tempo duram mais! Bom dia e vai ao quiosque. Olha lá vem ele? Diga!? Devia ser proibido assustar assim as pessoas! Está a ouvir? Olhe, olhe! Então? Passa por aqui a esta hora todos os dias. A sirene inunda a praça. Não há urgência mas o motorista da ambulância liga-a sempre para passar nos sinais da Avenida. Faz isso duas vezes por dia. Não há direito. Sobressalta. Pensa-se logo o pior pela manhã! Essa não sabia! Pois, mas é verdade. Uma vergonha! Chega-se ao carro e escapou-se à multa da Polícia Municipal. Sorriso. A esta hora ainda não saíram para a rua. É só depois das 9h/9h30 que os carros são varridos a papelinhos. Arranca. Outra rotunda. Camião avariado mesmo no meio. Livra! Mas pronto, o dia só começou agora.

MRF

As minhas meninas


As meninas são minhas, só minhas, na minha ilusão, as minhas meninas no meu coração.


do amor


às minhas duas filhas




... e ela disse que eu vos amava porque vocês são uma extensão de mim, como se o meu corpo e tudo o que eu sou se dilatasse, se estendesse, desdobrado nas duas que sois, e completo nas duas que sois, como se eu fosse com vocês um espaço contido em limites, como se eu fosse um tempo que não expirasse com a minha morte. e eu não consegui dizer que não mas é não. o meu amor por vós tem o fundamento da vossa estranheza, das vossas dores e fragilidades__ que não são minhas, da vossa inocência e esperança__ que não são minhas, da vossa beleza e encanto__ que não são meus. e é imenso. desmesurado. às vezes maior do que as minhas forças e competências. e o amor, esse amor, nasce de um dom que eu tenho e que não vou perder. um dom que se revelou face à vossa estranheza. de vos querer servir bem no amor. de vos dar o que sei ___ e às vezes até a minha ignorância. de vos dar cuidados e beijos. até à exaustão. até parecer que me extingo. e em dias bons, e são muitos os dias bons, até parecer que sou feliz. o que é meu é só esse amor, não vós.

28.1.14

Lis, no peito

A única entrevista filmada a Clarice Lispector. "Tímida e ousada". "Triste e solitária". Clarice fala, morta, no seu túmulo. "Lis no peito".





Woolf

Virginia Woolf, reflectindo sobre escrita, criação de palavras e de beleza e sobre crítica literária. A gravação áudio é uma raridade: datada de 1937 (BBC), foi a única de VW que sobreviveu.

Com o seu " old upper class British accent", ela soa a páginas de um livro que se folheia.