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21.10.06

SIM ou NÃO. A questão do aborto #3

Ou o que eu sempre contesto nos debates sobre a questão do aborto.

O aborto não é um problema das mulheres. A responsabilidade da anticoncepção, do planeamento familiar e da gravidez deve ser partilhada pelo casal. Num sentido lacto, toda a sociedade é responsável. Por isso, devem ser criados programas de informação e serviços adequados que permitam, em todos os momentos, uma tomada de decisão consciente.

O aborto clandestino não é praticado apenas pelos estratos sociais mais desfavorecidos. Mulheres de todas as classes sociais, solteiras e casadas, com vinte ou com quarenta anos, recorrem ao aborto. É mais provável que uma estudante universitária, de classe média, ou média-alta, opte por uma IVG face a uma gravidez não desejada, do que uma rapariga sem expectativas elevadas em termos de futuro profissional. Como é mais provável que uma mulher casada, com filhos crescidos, esteja mais predisposta a interromper uma nova gravidez, do que uma mulher solteira sem filhos e com uma relação emocional estável. As pessoas com menos recursos estarão contudo mais sujeitas a deparar-se com os verdadeiros atentados à sua saúde física e psicológica, que são os lugarejos dos desmanchos geridos por abortadeiras. Mas existem clínicas e outros estabelecimentos equipados para a realização de IVG em Portugal. Estes são recomendados por médicos, em consultórios privados ou nos seus gabinetes nos Centros de Saúde e Hospitais Públicos. Se não se encontrar um médico, encontra-se uma enfermeira. Alguns preparam apenas as pacientes, outros executam pessoalmente a intervenção. Acredito que a maior parte destes técnicos de saúde que optam por encaminhar as mulheres que requisitam a IVG, o fazem com a consciência de que evitam um mal menor. Sem esse acompanhamento, elas recorreriam a serviços menos competentes. Sei que alguns, espero que poucos, recebem comissões quando orientam as mulheres para determinado lugar clandestino. Outros, ainda em menor número, espero, face a uma gravidez precoce, tentam persuadir as jovens a interromper a gravidez. Conheci um caso desses. Que eu saiba, já ninguém precisa de ir a Espanha. Esqueçam Espanha.

As associações/movimentos católicos ou de solidariedade social que não concordam com a despenalização do aborto, e que aproveitam os períodos de campanha eleitoral para dar a conhecer a sua acção junto da população mais desfavorecida, merecem todo o nosso respeito. Mas não podem confundir acolhimento com salvação. E não podem reduzir as causas do aborto à precaridade das condições socio-económicas. Espero não voltar a ouvir, como ouvi em 1998, relatos de padres que afirmavam dar os parabéns às adolescentes grávidas que acolhiam, porque elas carregavam a vida dentro de si. Acolher adolescentes grávidas em situação de abandono é meritório, confundi-las dando-lhes uma benção é pernicioso.

Que exista uma tendência generalizada para a solidarização com as mulheres mais jovens e com os mais desfavorecidos é óptimo, que se escarneça sobre as burguesas, as tais que supostamente vão às clínicas em Espanha, é medíocre. E isso acontece, na retórica dos grupos religiosos, e na dos militantes, novos e de toda a vida, da velha esquerda.

Os defensores da despenalização do aborto usam frequentemente slogans ou assumem posições extremas que acabam por ter um efeito perverso em campanhas de sensibilização. Existe obviamente o chavão feminista, com o qual não concordo, e que tem o seu expoente na famosa frase de combate, "a barriga é minha", às vezes escrita a negro no ventre das militantes. É que, apesar da barriga ser certamente minha, o embrião é de ambos, além de que, por ser minha, não faço qualquer coisa com ela. A ideia que pode ser transmitida de que "faço o que quiser porque sou eu que assumo com as consequências" não me parece servir bem o fim. Se queremos comunicar uma posição, que ela seja a de que "eu quero ser responsável pelos meus actos", sendo que, face à excepção de uma gravidez involuntária, exijo o direito de tomar livremente a melhor decisão.
Na campanha para o referendo de 1998, ouvi no tempo de antena de um partido ou movimento a favor do SIM (já não me lembro qual era), o testemunho de uma mulher que tinha feito 10 abortos. Ela aparecia como mais uma grande mártir da legislação em vigor. Não são esses exemplos que me fazem votar pelo SIM.

O que também não compreendo é a não distinção entre as mulheres grávidas que, por desespero, fazem um aborto, e aqueles/as que têm uma máquina montada para explorar o filão, aproveitando a oportunidade de negócio que a legislação actual provocou, e fazendo-o muitas vezes sem quaisquer escrúpulos. As penas de prisão vão de-até 3 anos para ambas as partes. Dizem que não é coerente querer a despenalização para as "utentes" do serviço e a criminalização para os que executam. Mas por causa dessa "incoerência", muitas "utentes" foram parar a hospitais com problemas de saúde graves, e algumas morreram.

Enfim, espero que todos estes cenários estejam em vias de extinção e que o debate evolua, centrando-se agora na melhor forma de enquadrar um novo serviço no Sistema de Saúde. O facto de o aborto passar a ser legal, não significa que ele passará a ser seguro e fácil. Os efeitos psicológicos continuarão a ser muito reais. Existem testemunhos de mulheres que ainda sofrem pelo aborto que fizeram há muitos anos atrás. Não tenho dúvidas, o aborto gera sofrimento físico e psicológico, pelo que ele deve ser a última solução. Há muito a fazer em matéria de prevenção e de organização, de forma a que:

- as mulheres tenham acesso a serviços de qualidade e que permitam uma IVG num período precoce da gravidez (até às 10-12 semanas da gravidez);
- se respeitem as normas técnicas definidas pela OMS para a prestação de cuidados de aborto seguro: o exame médico prévio, a informação e aconselhamento para uma decisão informada e livre, a informação sobre os procedimentos de aborto, a informação e aconselhamento sobre contracepção e prevenção das IST, o período de recobro e o acompanhamento médico pós-aborto, o fornecimento de contraceptivos e as instruções dos cuidados pós-aborto.

No dia do referendo, é importante votar. Ele só será vinculativo se mais de 50% dos eleitores participarem. E espero que o SIM, desta vez, se ouça mais alto que o NÃO. É tempo de Portugal ir ao encontro desta orientação da Organização Mundial da Saúde: “Os governos têm de avaliar o impacto dos abortos inseguros, reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de planeamento familiar alargados e de qualidade, deverão enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base um compromisso com a saúde das mulheres e com o seu bem-estar e não com base nos códigos criminais e em medidas punitivas." (1997)

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