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6.9.06

Banville, O mar e Vermeer

A memória não gosta do movimento, prefere reter as coisas imobilizadas e, como acontece com tantas cenas evocadas, estou a ver esta como se fosse um quadro. Rose com o busto inclinado para a frente e as mãos apoiadas nos joelhos, o cabelo caído a tapar-lhe o rosto numa madeixa comprida e brilhante, a escorrer espuma de sabão. Está descalça, vejo-lhe os dedos dos pés sobre a erva crescida, veste uma daquelas blusas de linho branco, de mangas curtas, vagamente tirolesas, tão populares na altura, tufadas na cintura e cingidas nos ombros, bordadas no peito num desenho abstracto a ponto-cruz vermelho e azul-prussiano. O decote é profundamente recortado e vislumbro os seus seios pendentes, pequenos e pontiagudos semelhantes às extremidades de dois fusos.

Johannes Vermeer, que também é conhecido como Vermeer de Delft ou Johannes van der Meer
Rapariga com jarro de leite, 1658-60



Mrs. Grace usa um roupão de cetim azul e delicados chinelos azuis, e transporta consigo para o exterior um perfume incongruente a toucador. Tem o cabelo apanhado junto às orelhas com dois ganchos ou travessões de tartaruga, acho que era assim que lhes chamavam. É visível que se levantou há pouco tempo e o rosto, iluminado pela luz da manhã, revela umas feições ásperas e desarmónicas. Está exactamente na mesma posição da rapariga com o jarro de leite de Vermmer, com a cabeça e o ombro esquerdo inclinados, uma das mãos em concha sob a densa cascata de cabelos de Rose e a outra a despejar um jacto de água prateada de um jarro de esmalte amolgado.

Transcrição: in Banville, John, O Mar, ed. ASA, Junho 2006, pp 140-141
Imagens: Popular Vermeer

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