Já sonho com Ngorongoro VII
Sabes bin, às vezes acredito na reencarnação. Vá, tem calma. Acontece que conheço esta leoa. Não só já a vi, como os nossos olhares já se cruzaram. E confiamos uma na outra. Reconheço-me nesta fêmea mas não sei explicar-te como. Talvez a minha memória se divirta a recriar imagens de infância e o meu pensamento mágico me engane. Mas não foi por acaso que, num impulso, me dirigi a ela e que ela se deitou nesse preciso momento, tranquila. Perdoa o susto. O que aconteceu depois? Não sei, "acordei". E então dei-me conta de que corria perigo. Por isso fiquei imóvel e concentrei-me apenas nas palavras do Andwele. Baixar o olhar, recuar lentamente.
Ficaste louco. Ainda vais ficar mais quando leres isto. Persisto numa inconsciência que te parece inaceitável. Para compreenderes tens que te lembrar que nasci no Dundo. Dundo, capital da Lunda Norte. Os meus irmãos de brincadeiras sempre tiveram, uns bonecas que vinham do Puto (como os "colonos" chamavam a Portugal), outros amuletos.
"Mininos" e monas, juntos. Não se nasce e cresce impunemente num lugar. Sabes isso. Os Matas (senhores) podiam estar divididos, mas nós não. Descalça no meio dos quiocos. Parecia-me natural pertencer também àquela terra.
Ainda antes de partir, enquanto preparava esta viagem, sentia que lentamente regressava às origens. Fui ao fundo do baú. Peguei no velho Ngombo e lancei mesmo aquelas figurinhas esculpidas em madeira. Saiu-me Mikama e Tchilôwa. Se acreditares em Tchokwe, sabe que a viagem vai correr bem. Espero que isso te tranquilize (se calhar, não). Mas deixa-me dizer-te mais: quando estas duas figuras se juntam, lembram ao viajante que devem respeito aos ídolos que forem encontrando no seu caminho. Esta leoa é um ídolo vivo. E eu sei, bin, que vai haver mais. Estamos apenas no princípio da grande viagem.
Amigo, obrigada pela tua companhia e pela tua generosidade. A tua vontade de me mostrares a tua África faz-nos percorrer quilómetros imensos a que chamas "pequenos desvios". O lago Manyara, depois o Parque Nacional de Tarangire. Não sei se vai caber tudo dentro de mim.
Agora estamos quase a chegar a Zanzibar. Anseio por ver a cor do mar. Dizes-me que é azul e límpida mas mais a norte, no Quénia, encontrei um Indico de águas turvas. Depois explicas-me porque é que é assim.
E vai ser bom encontrar o Bagaço, se tudo correr bem vai juntar-se a nós esse amigo. Aposto que já conhece os melhores bares de Zanzibar e que já escreveu alguns contos negros com marinheiros desdentados e prostitutas que viram os vestidos subir, mês após mês, com a certeza de nunca mais verem os amantes que as deixaram assim, gordas de vida.
Um abraço grande (já to dou)
Maria
P.S.: Dou-te o texto agora, mas só o lês quando eu não estiver por perto.
Sabes bin, às vezes acredito na reencarnação. Vá, tem calma. Acontece que conheço esta leoa. Não só já a vi, como os nossos olhares já se cruzaram. E confiamos uma na outra. Reconheço-me nesta fêmea mas não sei explicar-te como. Talvez a minha memória se divirta a recriar imagens de infância e o meu pensamento mágico me engane. Mas não foi por acaso que, num impulso, me dirigi a ela e que ela se deitou nesse preciso momento, tranquila. Perdoa o susto. O que aconteceu depois? Não sei, "acordei". E então dei-me conta de que corria perigo. Por isso fiquei imóvel e concentrei-me apenas nas palavras do Andwele. Baixar o olhar, recuar lentamente.
Ficaste louco. Ainda vais ficar mais quando leres isto. Persisto numa inconsciência que te parece inaceitável. Para compreenderes tens que te lembrar que nasci no Dundo. Dundo, capital da Lunda Norte. Os meus irmãos de brincadeiras sempre tiveram, uns bonecas que vinham do Puto (como os "colonos" chamavam a Portugal), outros amuletos.
"Mininos" e monas, juntos. Não se nasce e cresce impunemente num lugar. Sabes isso. Os Matas (senhores) podiam estar divididos, mas nós não. Descalça no meio dos quiocos. Parecia-me natural pertencer também àquela terra.
Ainda antes de partir, enquanto preparava esta viagem, sentia que lentamente regressava às origens. Fui ao fundo do baú. Peguei no velho Ngombo e lancei mesmo aquelas figurinhas esculpidas em madeira. Saiu-me Mikama e Tchilôwa. Se acreditares em Tchokwe, sabe que a viagem vai correr bem. Espero que isso te tranquilize (se calhar, não). Mas deixa-me dizer-te mais: quando estas duas figuras se juntam, lembram ao viajante que devem respeito aos ídolos que forem encontrando no seu caminho. Esta leoa é um ídolo vivo. E eu sei, bin, que vai haver mais. Estamos apenas no princípio da grande viagem.
Amigo, obrigada pela tua companhia e pela tua generosidade. A tua vontade de me mostrares a tua África faz-nos percorrer quilómetros imensos a que chamas "pequenos desvios". O lago Manyara, depois o Parque Nacional de Tarangire. Não sei se vai caber tudo dentro de mim.
Agora estamos quase a chegar a Zanzibar. Anseio por ver a cor do mar. Dizes-me que é azul e límpida mas mais a norte, no Quénia, encontrei um Indico de águas turvas. Depois explicas-me porque é que é assim.
E vai ser bom encontrar o Bagaço, se tudo correr bem vai juntar-se a nós esse amigo. Aposto que já conhece os melhores bares de Zanzibar e que já escreveu alguns contos negros com marinheiros desdentados e prostitutas que viram os vestidos subir, mês após mês, com a certeza de nunca mais verem os amantes que as deixaram assim, gordas de vida.
Um abraço grande (já to dou)
Maria
P.S.: Dou-te o texto agora, mas só o lês quando eu não estiver por perto.
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