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28.3.09

No Moinho

Jean Baptiste Camille Corot
Saulaie à Saint Nicolas près Arras, 1858-1860



D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como uma «senhora-modelo». O velho Nunes, director do Correio, sempre que falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:
- É uma santa! É o que ela é ! (...)
Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha (...). Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. (...)
Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata: todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul.(...) A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do céu; naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; (...)
Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta do seu primo Adrião, que lhe anunciava que ia chegar à vila. (...)
Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam as mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples (...) De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo.
No outro dia foram ver a fazenda. (...) Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contacto daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singularmente. (...)
O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras (...).
E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, de um só beijo, profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. (...) ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:
- É mal feito... É mal feito...
Ele mesmo estava tão perturbado - que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou: «Fui um tolo!». Mas no fundo estava contente da sua generosidade. (...)
Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. (...) Amava-o. (...) e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios... Era uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da Natureza, que atravessava, subitamente, a sua alcova abafada: e respirava deliciosamente... (...)
Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela (...) lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. (...) Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros (...).
E o romanticismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços - e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.
Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem de emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe - para andar atrás do homem, um manganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonèzinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo; cheira a suor; e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila «a Bola de Unto».

Eça de Queiroz

«No Moinho», in Contos, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, 2002, pp. 49-63

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