Obra: «O INCESTO», MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO, 1912
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «PRÁTICAS LUXURIOSAS»
- Mas não o tinha amado a Júlia? (...)
No leito vasto de pau-santo, profundo como um túmulo, muitas vezes tivera medo da grande serpente amorosa que o mordia, que o feria nas carícias brutais da sua boca escaldante, nas convulsões despedaçadoras de todo o seu corpo nu!... E era ela...ela...ela mesma, a bêbeda de luxúria que alta noite lhe uivava de amor; era ela, a amante, a amiga e a mãe – ah! e a mãe! - que assim procedia, que fugia, cadela aluada atrás de outro cão... atrás de uma matilha inteira!...
Safada! Safada!
p. 212
Quando voltara a Paris, ia nos 16 anos; a sua carne despertava para o amor. O que o maravilhara, então, tinham sido as mulheres esplêndidas que via nos teatros, cobertas de jóias, amplamente decotadas; (...) Com que prazer infinito não misturaria o seu corpo todo nu aos corpos despidos dessas criaturas de sonho... E, mesmo, que horas inefáveis não passaria com uma dessas raparigas tão galantes que, à noite, circulavam em chusma pelos boulevards... O sabor estranho que haviam de ter os beijos daqueles lábios pintados, as carícias daqueles seios agudos tremendo mal escondidos, perturbadores... Puro ainda, sabia fantasiar, no entanto, todas as volúpias, todos os êxtases...
pp. 249-250
E a noite de núpcias, a terrível noite?... AH! Com que prazer feroz ele estreitara, ele possuíra, esse corpo admirável, quente e amoroso... como beijara essa boca sadia, vermelha e húmida... como mordera aqueles seios louros, de pontas trigueiras e ácidas!
p. 262
No grande leito de pau-santo, profundo como um túmulo, havia agora as mesmas lutas, havia os mesmos espasmos, os mesmos abraços doidos dos tempos da amante fulva. Natureza sensual, viciosa quase, Magda de bom grado se prestava a todas as fantasias do marido, lhe correspondia aos beijos brutais, se contorcia em violentos êxtases. Mas em certas noites, era tal a ânsia com que Luís se precipitava sobre a sua carne nua, que ela chegava a ter-lhe medo, receando, verdadeiramente receando, que as suas mãos ávidas se lhe colassem à garganta num círculo férreo, estrangulador. Porém, (...) o seu prazer aumentava, era mais completo e inebriante por se lhe misturar o terror.
pp. 262-263
Uma vez tentou negar-se ao marido. Este, percebendo-lhe as intenções, agarrara-a pelos pulsos, torcera-lhos brutalmente e esmagara-lhe os lábios com um beijo tão frenético, tão delicioso, que no mesmo instante ela tombara vencida, enrodilhada debaixo dele. (...) ah! Não foram beijos – foram mordeduras de onde o sangue escorrera... Tudo acabara por um arranco supremo de gozo, sibilante e profundo, que mais tinha parecido o estertor de uma agonia horrível...
p. 263
Na manhã seguinte, ao acordar morta de fadiga e ao ver uma nódoa negra no seio esquerdo, Magda (...) teve medo, mas um medo real
p. 263
Depois, entre os espasmos, nunca lhe ouvira uma palavra de amor!
p. 264
... eles amavam-se como dois possessos
p. 264
E por que é que nunca desejara nenhuma mulher com tamanho ardor? (...) Porque só nessa encontrar as mesmas feições da morta! Demais, a prova concludente de que fora assim, é que ele ignorava ainda hoje toda a alma da estrangeira. Logo, o que o fizera desejar aquele corpo não fora a alma que o animava, fora apenas a carne que o constituía. (...) ele só desejara Magda pelo que nela havia de Leonor. Leonor. Coisa horrível, ai, mas bem real..., bem real!
pp. 264-265
... começavam-lhe a surgir lembranças mais perversas, mais sacrílegas e, entre todas, uma mais frequente: a estranha sensação que uma noite experimentara ao descobrir no crepe da China verde da blusa de Leonor, o bico de um seio vagabundo apontando audacioso.
p. 265
Infâmia! Tinha-se consumado há muito o incesto... durava desde a morte da filha! (...) Só desde a morte? (...) E a noite de luar? (...) reconhecia aterrado: não fora júbilo, não; fora o ciúme... o ciúme!... (...)
E todas estas divagações exacerbavam a sua fúria amorosa; cada noite mordia com maior ânsia o corpo nu da estrangeira.
p. 266
«Se lhe tirassem o seu crime sofreria mais do que sofria com ele.
p. 268
Agora tinha visões abomináveis. (...) vira de repente diante dos seus olhos a mãe e a filha – a grande amante fulva e a virgem lirial – todas descompostas, a rolarem-se pelo tapete; misturando os membros, possuindo-se em deboches infernais. Depois fora uma longa teoria de dançarinas obscenas, louras umas, outras ruivas...(...) transformando-se cada um no rosto da morta. (...) E sobre os seus lábios ele sentira – oh horror! deliciosamente sentira – o latejar desse sexo palpitante, ardentíssimo! ... Até que por último, vencido, descerrara a boca e beijara-o, sugara-o, mordera-o num delírio bestial!
p. 268
in Princípio e Outros Contos
Ed: Publicações Europa-América, Lisboa, 1985
Tema: «PRÁTICAS LUXURIOSAS»
- Mas não o tinha amado a Júlia? (...)
No leito vasto de pau-santo, profundo como um túmulo, muitas vezes tivera medo da grande serpente amorosa que o mordia, que o feria nas carícias brutais da sua boca escaldante, nas convulsões despedaçadoras de todo o seu corpo nu!... E era ela...ela...ela mesma, a bêbeda de luxúria que alta noite lhe uivava de amor; era ela, a amante, a amiga e a mãe – ah! e a mãe! - que assim procedia, que fugia, cadela aluada atrás de outro cão... atrás de uma matilha inteira!...
Safada! Safada!
p. 212
Quando voltara a Paris, ia nos 16 anos; a sua carne despertava para o amor. O que o maravilhara, então, tinham sido as mulheres esplêndidas que via nos teatros, cobertas de jóias, amplamente decotadas; (...) Com que prazer infinito não misturaria o seu corpo todo nu aos corpos despidos dessas criaturas de sonho... E, mesmo, que horas inefáveis não passaria com uma dessas raparigas tão galantes que, à noite, circulavam em chusma pelos boulevards... O sabor estranho que haviam de ter os beijos daqueles lábios pintados, as carícias daqueles seios agudos tremendo mal escondidos, perturbadores... Puro ainda, sabia fantasiar, no entanto, todas as volúpias, todos os êxtases...
pp. 249-250
E a noite de núpcias, a terrível noite?... AH! Com que prazer feroz ele estreitara, ele possuíra, esse corpo admirável, quente e amoroso... como beijara essa boca sadia, vermelha e húmida... como mordera aqueles seios louros, de pontas trigueiras e ácidas!
p. 262
No grande leito de pau-santo, profundo como um túmulo, havia agora as mesmas lutas, havia os mesmos espasmos, os mesmos abraços doidos dos tempos da amante fulva. Natureza sensual, viciosa quase, Magda de bom grado se prestava a todas as fantasias do marido, lhe correspondia aos beijos brutais, se contorcia em violentos êxtases. Mas em certas noites, era tal a ânsia com que Luís se precipitava sobre a sua carne nua, que ela chegava a ter-lhe medo, receando, verdadeiramente receando, que as suas mãos ávidas se lhe colassem à garganta num círculo férreo, estrangulador. Porém, (...) o seu prazer aumentava, era mais completo e inebriante por se lhe misturar o terror.
pp. 262-263
Uma vez tentou negar-se ao marido. Este, percebendo-lhe as intenções, agarrara-a pelos pulsos, torcera-lhos brutalmente e esmagara-lhe os lábios com um beijo tão frenético, tão delicioso, que no mesmo instante ela tombara vencida, enrodilhada debaixo dele. (...) ah! Não foram beijos – foram mordeduras de onde o sangue escorrera... Tudo acabara por um arranco supremo de gozo, sibilante e profundo, que mais tinha parecido o estertor de uma agonia horrível...
p. 263
Na manhã seguinte, ao acordar morta de fadiga e ao ver uma nódoa negra no seio esquerdo, Magda (...) teve medo, mas um medo real
p. 263
Depois, entre os espasmos, nunca lhe ouvira uma palavra de amor!
p. 264
... eles amavam-se como dois possessos
p. 264
E por que é que nunca desejara nenhuma mulher com tamanho ardor? (...) Porque só nessa encontrar as mesmas feições da morta! Demais, a prova concludente de que fora assim, é que ele ignorava ainda hoje toda a alma da estrangeira. Logo, o que o fizera desejar aquele corpo não fora a alma que o animava, fora apenas a carne que o constituía. (...) ele só desejara Magda pelo que nela havia de Leonor. Leonor. Coisa horrível, ai, mas bem real..., bem real!
pp. 264-265
... começavam-lhe a surgir lembranças mais perversas, mais sacrílegas e, entre todas, uma mais frequente: a estranha sensação que uma noite experimentara ao descobrir no crepe da China verde da blusa de Leonor, o bico de um seio vagabundo apontando audacioso.
p. 265
Infâmia! Tinha-se consumado há muito o incesto... durava desde a morte da filha! (...) Só desde a morte? (...) E a noite de luar? (...) reconhecia aterrado: não fora júbilo, não; fora o ciúme... o ciúme!... (...)
E todas estas divagações exacerbavam a sua fúria amorosa; cada noite mordia com maior ânsia o corpo nu da estrangeira.
p. 266
«Se lhe tirassem o seu crime sofreria mais do que sofria com ele.
p. 268
Agora tinha visões abomináveis. (...) vira de repente diante dos seus olhos a mãe e a filha – a grande amante fulva e a virgem lirial – todas descompostas, a rolarem-se pelo tapete; misturando os membros, possuindo-se em deboches infernais. Depois fora uma longa teoria de dançarinas obscenas, louras umas, outras ruivas...(...) transformando-se cada um no rosto da morta. (...) E sobre os seus lábios ele sentira – oh horror! deliciosamente sentira – o latejar desse sexo palpitante, ardentíssimo! ... Até que por último, vencido, descerrara a boca e beijara-o, sugara-o, mordera-o num delírio bestial!
p. 268
[Imagem: Duma, Decifra o meu silêncio, Óleo sobre tela, 100x100 cm, 2006]
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