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20.9.08

Que laicidade para a Europa do século XXI?

Em alguns países europeus, esta é a questão da ordem do dia e urge uma resposta sábia. Em França, dois discursos de Nicolas Sarkozy - em Roma a 2 de Dezembro e em Riad a 14 de Janeiro, acenderam o debate. Para o Presidente da República francês, «uma política de civilização» exige que «a dimensão religiosa do homem seja respeitada» e que se deixe de «ignorar oficialmente as religiões». Os Estados devem passar a «reconhecer "o facto religioso" nas suas dimensões histórica e cultural» e devem «acabar com a hipocrisia que vigora entre religiões e Estado, oficialmente separados mas unidos por numerosos laços e compromissos».

Estes discursos, que poderíamos considerar apenas très realpolitik, sobretudo o proferido na Arábia Saudita, excedem os limites da substância da lei de separação dos poderes (tal como vigora em França desde 1905) a partir do momento em que Sarkozy, Presidente de um Estado laico, declara que «Dieu est au coeur de chaque homme» e afirma que «a religião não pode ser reduzida ao simples espaço privado».

Não se põe em causa a bondade da intenção de pôr fim à «guerra das duas Franças» (clerical e laica) nem o valor do apelo à tolerância religiosa. O que é questionável é se podemos confundir (e preferir) a aceitação da diversidade religiosa e a defesa da laicidade.

A resposta, aparentemente simples, acabou por não me parecer nada evidente. No último ano estive na Bósnia, na Tunísia, em Inglaterra, na Alemanha, em França e na Suiça. Confesso que estranhei a omnipresença da comunidade muçulmana. O uso de burkas - para mim, uma manifestação pública de fanatismo religioso, e que eu julgava reservado a países conotados com o extremismo islâmico -, é uma prática que fui forçada a encarar com naturalidade. De resto, vi mais mulheres com burka na Suiça do que na Bósnia ou na Tunísia. Neste país, numa zona turística, nadei e fiz hidroginástica lado a lado com portadoras de túnica e hijab (o véu islâmico). Estranhei que não despissem a vestimenta dentro da piscina, mas entranhei.

No centro da Europa dei comigo a pensar na forma como reagiria se, na minha cidade, começassem a crescer mesquitas e minaretes. Na Suiça,
a população insurge-se contra esta nova tendência (construções maioritariamente financiadas pela Arábia Saudita). E nem pensar em ouvir o apelo à oração ou muezzin! Mas, e se a proibição se alargasse ao repicar dos nossos sinos? Defender a laicidade pode conduzir a esses silêncios, o que não me parece legítimo, sobretudo depois de ver como é possível a convivência aberta entre diferentes credos em Sarajevo (e não, não esqueci a trágica História recente).

Na Europa Ocidental, a influência do cristianismo decresce, a par da emergência de novas confissões. A Inglaterra já se assume como uma sociedade multiconfessional (cristã, muçulmana e hindu). Noutros países, a integração da minoria muçulmana continua a suscitar tensões e a dividir opiniões. Assumo-me como defensora dos princípios da laicidade, mas não concordei com a lei que proibiu o uso do véu islâmico nas escolas francesas. Saber conviver com a diversidade religiosa e o multiculturalismo (conceitos diferentes mas que aqui se aproximam) supõe, para mim, o respeito pela decisão individual de ostentar símbolos religiosos. Ideais feministas e leis de paridade entre géneros devem reconhecer a impossibilidade de avaliar com rigor - e determinar - se esses comportamentos são impostos por terceiros (normalmente pais ou maridos). Enfim, esse tem sido o argumento utilizado pelos defensores da polémica lei. Discordo. Discordo também que
um juiz possa não atribuir a nacionalidade francesa a uma cidadã por esta usar burka como aconteceu recentemente, também em França.

Na Tunísia, as turistas ocidentais que faziam topless suscitavam-me o mesmo tipo de questões que as muçulmanas de burka na Suiça. Por momentos, ainda ficava dividida entre o deleite de me sentir rodeada de todos os mundos e o (pre)conceito que me levava a comportar-me e a desejar que todos se comportassem seguindo o lema de "em Roma faz como os romanos".

A verdade é que não há "romanos" puros. Nesta era de migrações globais, o que é ser europeu? É-se europeu independentemente do país de ascendência, da raça e do credo. Está a ser difícil aceitar a nova identidade europeia, mas convém não esquecer o que somos.

Voltemos então ao cerne da questão: tem sentido a defesa do que Nicolas Sarkozy apelidou de «laicidade positiva»?

As minhas leituras levaram-me à descoberta de um artigo escrito por Mustapha Benchenane (Révue "Une Certaine Idée", nº 16 de Dez. 2003) no momento em que se vivia um clima agitado em França devido precisamente à questão do uso do véu islâmico nos estabelecimentos de ensino público. Benchenane conclui que a laicidade, tal como é definida e está consagrada no sistema legal francês (lei de 9 de Dezembro de 1905), não se opõe ao uso de qualquer símbolo religioso em locais públicos, incluindo a escola. O Islão, por outro lado, ao contrário do que defendem os fundamentalistas, não obriga as mulheres a tapar-se. O hidjab ou a burka não são prescritos pelo Corão. Porquê então o psicodrama criado pelos parlamentares franceses e pelos representantes da comunidade islâmica?
A verdade é que Estados e cidadãos se sentem ameaçados e "invadidos" pela diferença das minorias (crescentes) e que, por outro lado, o hidjab e a burka, assim como a construção de novos templos, são utilizados na Europa como uma forma de afirmação político-religiosa. Por agora, nenhuma destas manifestações levou directamente à alteração da ordem pública mas a tensão aumenta e adivinham-se conflitos. Um Estado laico deve ser neutro em matéria de religião. O discurso de Sarkosy reflecte pois um imenso desvario. Dar poder à ala clerical (seja ela qual for) terá um efeito perverso. Mas, e nós, meros cidadãos desta Europa? Aceitamos a expressão de diferentes confissões no nosso quotidiano, aceitamos as mudanças obrigatórias no nosso habitat, ou dizemos não a tudo em nome da laicidade? Há meio termo?
O debate está aberto.


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