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25.4.08

Viva a Liberdade! (ao largo os Passa-Monte!)

Cruzeiro Seixas
O Céu estava lucidíssimo
Gouache s/ papel - 19x16 cm - 1973



CAPÍTULO XXII
Da liberdade que D. Quixote deu a muitos desafortunados que iam levados contra sua vontade onde eles por si não queriam ir

(...) alçou D. Quixote os olhos e viu que pelo seu caminho vinham uns doze homens a pé engranzados como contas numa grande cadeia de ferro pelos pescoços, e todos algemados. (...)
- Esta é cadeia de galeotes, gente forçada da parte de el-rei, para servir nas galés.
- Como «gente forçada»? - perguntou Dom Quixote. (...)
- Em conclusão - replicou Dom Quixote -, como quer que seja, esta gente, ainda que os levam, vai à força e não por sua vontade.
- É verdade - concordou Sancho.
- Pois sendo assim - disse o amo - aqui está onde acerta à própria o cumprimento do meu ofício; desfazer violências e dar auxílio a miseráveis. (...)
Nisto, chegou a cadeia de galeotes e Dom Quixote com mui corteses falas pediu aos que os iam guardando fossem servidos de informá-lo e dizer-lhe a causa ou causas, por que levavam aquela gente daquele modo. (...)
- De tudo o que me haveis dito, caríssimos irmãos, tenho tirado a limpo o seguinte: que e bem vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides padecer nem por isso vos dão muito gosto, e que ides para elas muito a vosso pesar e contra vontade, e que bem poderia ser que o pouco ânimo daquele nos tratos, a falta de dinheiro neste, os poucos padrinhos daqueloutro, e, finalmente, que o juízo torto do magistrado fossem causa da vossa perdição e de se vos não ter feito a justiça que vos era devida. (...)
- Graciosa pilhéria é essa - respondeu o comissário - e vem muito a tempo. Forçados de el-rei quer que os soltemos, como se para tal houvéssemos autoridade ou ele a tivesse para no-la intimar! Vá-se Vossa Mercê, senhor, nas boas horas; siga o seu caminho e endireite essa bacia que leva na cabeça, e não queira tirar castanhas com a mão do gato.
- Gato e rato e velhaco sois vós, patife - respondeu D. Quixote.
E, dito e feito, arremeteu com ele tão a súbitas, que sem lhe dar azo de se pôr à defesa, deu com ele em terra malferido de uma lançada; e dita foi, que era aquele o da escopeta. (...)
Tamanha foi a revolta que os guardas já para terem mão nos galeotes, que se estavam soltando, já para se haverem com D. Quixote, que os acometia a eles, não puderam fazer coisa que proveitosa lhes fosse.(...)

Passa-Monte, que nada tinha sofrido e já estava caído na conta de que D. Quixote não tinha o juízo todo (pois tal disparate havia cometido como era o de querer dar-lhes liberdade), vendo-se maltratado e daquela maneira, deu de olho aos companheiros, e retirando-se à parte, começaram a chover tantas pedradas sobre D. Quixote que poucas lhe eram as mãos para se cobrir com a rodela; e o pobre Rocinante já fazia tanto caso da espora, como se fosse de bronze.(...)

Ficaram sós o jumento e Rocinante, Sancho e D. Quixote: o jumento cabisbaixo e pensativo, sacudindo de quando em quando as orelhas, por cuidar que ainda não teria acabado o temporal das seixadas, que ainda lhe zuniam os ouvidos; Rocinante, estendido junto do amo, pois também o derrubara outra pedrada; Sancho desenroupado e temeroso da Santa Irmandade; e D. Quixote raladíssimo, por se ver com semelhante pago daqueles mesmos a quem tamanho benefício tinha feito.

in D. Quixote de La Mancha, de Miguel Cervantes
pp. 213 a 223 do I Volume, Ed. Círculo de Leitores, 2005

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