Não vi o filme dos irmãos Coen, e acho que não o vou ver. Não me apetece. Li o livro de Cormac McCarthy e, por agora, basta-me a dose de violência e a quantidade de sangue que filtrei por via das palavras. Rejeito imagens adicionais. Se calhar faço mal, mas a peruca de Javier Bardem também não me convence. Como é que foram inventar uma peruca daquelas?
Li Este país... em poucos dias. Não conhecia McCarthy. Tem um estilo em que predomina a conjunção «e», poucas vírgulas e muito pontos finais (neste vídeo, o autor comenta o seu próprio estilo). É impressionante a capacidade descritiva, e como elege e eleva cada gesto, cada passo, cada palavra, ao palco dos sentidos. O seu arquivo de comportamentos, de percursos corporais, de expressões humanas, é vastíssimo. O romance é ele próprio uma tela, tem movimento, cadência, som. Os solilóquios do xerife, que iniciam cada capítulo, dão profundidade e humanidade à obra, não nos deixando cair na tentação de fixar apenas mortes e perseguições. A moral de McCarthy é sorrateira e banal - porque é aquela em que todos cremos, mas emerge da negação, da subversão, do crescente domínio do aleatório. Aparentemente, cara ou coroa, e a sorte decide o destino. McCarthy agarra a velha crise de valores da América, do mundo. Este país não é para velhos mas os novos não-valores são os mesmos que não permitem aos mais jovens interiorizar um futuro no presente.
Talvez vá ver o filme. Mas não queria esquecer as palavras ou o bloco de pedra maciça que imaginei.
«Não sei há quanto tempo o tanque ali estava. Cem anos. Duzentos. Viam-se marcas do cinzel na pedra. Fora talhado num bloco de pedra maciça e tinha cerca de um metro e oitenta de comprido e talvez meio metro de largo e outro tanto de fundo, mais ou menos. Esculpido na rocha em bruto. E pus-me a pensar no homem que fabricou aquilo. Aquela terra não gozou de nenhum período prolongado de paz, tanto quanto me era dado saber. (...) Mas o tal homem pegou num martelo e num cinzel e talhou um tanque de pedra para a água feito para durar dez mil anos. E porquê? Em que é que ele tinha tanta fé? Não tinha fé em que nada mudasse. Que é a primeira coisa que nos ocorre, parece-me. Ele não era tão tolo que caísse nesse logro, de certeza. Tenho pensado imenso nisto. (...) E então penso nele ali sentado, de martelo e cinzel em punho, se calhar somente uma hora ou duas depois do jantar, não sei. E deixem que vos diga, a única coisa que me ocorre é que ele albergava no coração uma qualquer promessa. E eu não faço tenções de talhar um tanque de pedra para a água. Mas gostava de ser capaz de fazer uma promessa assim. Penso que era o que eu mais gostava de fazer.»
in Cormac McCarthy, Este País Não É Para Velhos
Li Este país... em poucos dias. Não conhecia McCarthy. Tem um estilo em que predomina a conjunção «e», poucas vírgulas e muito pontos finais (neste vídeo, o autor comenta o seu próprio estilo). É impressionante a capacidade descritiva, e como elege e eleva cada gesto, cada passo, cada palavra, ao palco dos sentidos. O seu arquivo de comportamentos, de percursos corporais, de expressões humanas, é vastíssimo. O romance é ele próprio uma tela, tem movimento, cadência, som. Os solilóquios do xerife, que iniciam cada capítulo, dão profundidade e humanidade à obra, não nos deixando cair na tentação de fixar apenas mortes e perseguições. A moral de McCarthy é sorrateira e banal - porque é aquela em que todos cremos, mas emerge da negação, da subversão, do crescente domínio do aleatório. Aparentemente, cara ou coroa, e a sorte decide o destino. McCarthy agarra a velha crise de valores da América, do mundo. Este país não é para velhos mas os novos não-valores são os mesmos que não permitem aos mais jovens interiorizar um futuro no presente.
Talvez vá ver o filme. Mas não queria esquecer as palavras ou o bloco de pedra maciça que imaginei.
«Não sei há quanto tempo o tanque ali estava. Cem anos. Duzentos. Viam-se marcas do cinzel na pedra. Fora talhado num bloco de pedra maciça e tinha cerca de um metro e oitenta de comprido e talvez meio metro de largo e outro tanto de fundo, mais ou menos. Esculpido na rocha em bruto. E pus-me a pensar no homem que fabricou aquilo. Aquela terra não gozou de nenhum período prolongado de paz, tanto quanto me era dado saber. (...) Mas o tal homem pegou num martelo e num cinzel e talhou um tanque de pedra para a água feito para durar dez mil anos. E porquê? Em que é que ele tinha tanta fé? Não tinha fé em que nada mudasse. Que é a primeira coisa que nos ocorre, parece-me. Ele não era tão tolo que caísse nesse logro, de certeza. Tenho pensado imenso nisto. (...) E então penso nele ali sentado, de martelo e cinzel em punho, se calhar somente uma hora ou duas depois do jantar, não sei. E deixem que vos diga, a única coisa que me ocorre é que ele albergava no coração uma qualquer promessa. E eu não faço tenções de talhar um tanque de pedra para a água. Mas gostava de ser capaz de fazer uma promessa assim. Penso que era o que eu mais gostava de fazer.»
in Cormac McCarthy, Este País Não É Para Velhos
Ed. Relógio D'Água, Outubro 2007
p. 225
[original, No Country For Old Men, publicado em 2005)
p. 225
[original, No Country For Old Men, publicado em 2005)
Em termos de leitura, segue-se A Estrada, o livro com que venceu o Prémio Pulitzer.
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