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22.9.07

A morte feliz #3

Até ali, tinha vivido. Agora poderiam falar da sua vida. Daquele grande impulso de destruição que o tinha impedido, da poesia fugitiva e criadora da vida. Nada ficava além da verdade sem rugas que é o contrário da poesia. De todos os homens que transportara no íntimo, como cada homem no início da vida, de tantos seres diferentes que misturam as suas raízes sem contudo se confundirem, sabia agora qual deles tinha sido. E essa escolha que cria o destino de um homem, tinha-a feito conscientemente e com coragem. Aí residia toda a sua felicidade de viver e de morrer. Compreendia que ter medo daquela morte que ele encarara com uma angústia de animal era também ter medo da vida. O medo de morrer justificava um apego sem limites a tudo o que é vivo no homem. E todos aqueles que não tinham praticado os gestos decisivos que enobrecem uma vida, todos aqueles que temiam e exaltavam a impotência, todos tinham medo da morte, pela sanção que ela imprime a uma vida de que sempre tenham ficado distantes.[...] E a morte era um gesto que priva para sempre de água o viajante que procurou em vão acalmar a sede.

pp. 144

in Albert Camus,
A Morte FelizEdit. Livros do Brasil, Lisboa, Outubro 2002
[Edição original: La Mort Heureuse, Éditions Gallimard, 1949]

A Morte Feliz foi concebida entre 1936 e 1938. Existem dois "dactilogramas" deste romance, do tempo de Camus, que fazem parte do espólio conservado por Madame Camus. Em 1961, Madame Camus mandou fazer uma nova cópia dactilografada, segundo a primeira versão, com as variantes da segunda escritas à mão. Existem ainda dossiers preparatórios e notas sobre A Morte Feliz nos Carnets. Encontra-se aí manuscrito, mas em fragmentos dispersos, quase todo o romance. A primeira referência precisa que aparece nos Carnets, Eduardo Graça, data de 1936 e é um plano para a «II Parte». Depois deste livro, peguei n' O Homem Revoltado e na peça adaptada do romance de Dostoievski, Os Possessos, do mesmo Camus. E muitas vezes me apeteceu trocar ideias e emoções, aprender, certamente, consigo. (Quem conhecer o Absorto, compreenderá de imediato porquê).

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