Deve dizer-se que o discurso de Orfeu se distingue agradavelmente do tom bruto e de comando de Jesus de Nazaré. Jesus era um pregador fanático, não pretendia convencer, queria que o seguissem, e sem condições. As suas falas são entremeadas de ordens, de ameaças e desta forma recorrente e apodíctica: "Mas em verdade vos digo..." É assim que falam em todas as épocas, aqueles que pretendem amar e salvar, não um ser humano, mas a humanidade. Quanto a Orfeu, apenas ama uma mulher e é apenas essa mulher que ele quer salvar: Eurídice. É por isso que o seu tom é conciliador, mais amável: ele pleiteia - a raíz da palavra é o provençal plait e significa que ele quer agradar e quer que sejam agradáveis para com ele. E pronto, o seu discurso é um êxito! Os soberanos do reino dos mortos entregam-lhe a mulher que ele ama - mas com a condição bem conhecida de que, no caminho de volta ao mundo do alto, ele não volte uma única vez a cabeça para ela, que seguirá atrás dele.
É aqui que Orfeu comete um erro. (O Nazareno nunca os comete. E mesmo quando comete erros evidentes - por exemplo, quando recruta um traidor para o seu grupo -, é um erro calculado e faz parte do plano escatológico.)
(...)
Lembremos que Orfeu é um artista e, como todos os artistas, não deixa de ter vaidade, ou antes: orgulho na sua arte. (...) enquanto subia, numa paisagem escarpada e cheia de ravinas, já muito longe dos mortos e ainda insuficientemente perto dos vivos, ninguém o ouvia. Excepto a pessoa que seguia atrás dele. E ela não dizia nada. Porquê? Tê-la-iam proibido de falar? Não poderia ela gritar uma vez "Bravo!" ou "Que lindo!"? Não poderia ela, pelo menos, bater as palmas, movida pela alegria e entusiasmo?
(...)
Porém, quando se voltou, para seu grande espanto, para seu grande terror, ela estava mesmo lá, apenas a dois passos, mas ainda do outro lado da fronteira, e assim a perdia por sua própria culpa. Ela olhou-o, tão espantada como ele, e também infinitamente triste, mas sem uma censura; disse-lhe "adeus" num sopro de voz que mal se ouvia, e caiu para sempre no Orco.
A história de Orfeu ainda hoje nos comove porque é uma história de fracasso. Acaba por falhar a prodigiosa tentativa de reconciliar as duas forças primitivas e misteriosas da existência humana, o amor e a morte, e de obrigar a mais cruel das duas a, pelo menos, um pequeno compromisso. A história de Jesus, pelo contrário, no que toca à confrontação com a morte, é triunfante desde o princípio até ao seu triste final. (...)
E o amor? O Eros cheio de pulsões e de desejos de que falámos? Pois bem, é desconhecido nesta morada. Em Jesus, o Eros está ausente.
in Süskind, Patrick, Sobre o Amor e a Morte, Ed. Presença, 2006, pp. 54-60
É aqui que Orfeu comete um erro. (O Nazareno nunca os comete. E mesmo quando comete erros evidentes - por exemplo, quando recruta um traidor para o seu grupo -, é um erro calculado e faz parte do plano escatológico.)
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Lembremos que Orfeu é um artista e, como todos os artistas, não deixa de ter vaidade, ou antes: orgulho na sua arte. (...) enquanto subia, numa paisagem escarpada e cheia de ravinas, já muito longe dos mortos e ainda insuficientemente perto dos vivos, ninguém o ouvia. Excepto a pessoa que seguia atrás dele. E ela não dizia nada. Porquê? Tê-la-iam proibido de falar? Não poderia ela gritar uma vez "Bravo!" ou "Que lindo!"? Não poderia ela, pelo menos, bater as palmas, movida pela alegria e entusiasmo?
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Porém, quando se voltou, para seu grande espanto, para seu grande terror, ela estava mesmo lá, apenas a dois passos, mas ainda do outro lado da fronteira, e assim a perdia por sua própria culpa. Ela olhou-o, tão espantada como ele, e também infinitamente triste, mas sem uma censura; disse-lhe "adeus" num sopro de voz que mal se ouvia, e caiu para sempre no Orco.
A história de Orfeu ainda hoje nos comove porque é uma história de fracasso. Acaba por falhar a prodigiosa tentativa de reconciliar as duas forças primitivas e misteriosas da existência humana, o amor e a morte, e de obrigar a mais cruel das duas a, pelo menos, um pequeno compromisso. A história de Jesus, pelo contrário, no que toca à confrontação com a morte, é triunfante desde o princípio até ao seu triste final. (...)
E o amor? O Eros cheio de pulsões e de desejos de que falámos? Pois bem, é desconhecido nesta morada. Em Jesus, o Eros está ausente.
in Süskind, Patrick, Sobre o Amor e a Morte, Ed. Presença, 2006, pp. 54-60
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