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26.11.06

A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua


Daniel Filipe
(1925 - 1964)
A Invenção do Amor e Outros Poemas, Lisboa, Presença, 1972



P.S.: Já tinham reparado que o Público nos oferece Um Poema Por Semana?

4 comentários:

  1. Porque meorreu este homem de cultura incontornável, uma pequena homenagem em forma de um dos seus poemas.


    "voz numa pedra

    Não adoro o passado
    não sou três vezes mestre
    não combinei nada com as furnas
    não é para isso que eu cá ando
    decerto vi Osíris porém chamava-se ele nessa altura Luiz
    decerto fui com Isis mas disse-lhe eu que me chamava João
    nenhuma nenhuma palavra está completa
    nem mesmo em alemão que as tem tão grandes
    assim também eu nunca te direi o que sei
    a não ser pelo arco em flecha negro e azul do vento

    Não digo como o outro: sei que não sei nada
    sei muito bem que soube sempre umas coisas
    que isso pesa
    que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
    acreditando ser ele o agente supremo
    do coração do mundo
    vaso de liberdade expurgada do menstruo
    rosa viva diante dos nossos olhos
    Ainda longe longe essa cidade futura
    onde «a poesia não mais ritmará a acção
    porque caminhará adiante dela»
    Os pregadores de morte vão acabar?
    Os segadores do amor vão acabar?
    A tortura dos olhos vai acabar?
    Passa-me então aquele canivete
    porque há imenso que começar a podar
    passa não me olhas como se olha um bruxo
    detentor do milagre da verdade
    a machadada e o propósito de não sacrificar-se não construirão ao sol coisa nenhuma
    nada está escrito afinal"

    Mário Cesariny


    Bom dia, Maria

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  2. "Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
    e souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado."
    "Sempre."

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  3. Não há dúvida que o amor é a coisinha mais bonita do mundo... enquanto dura!

    Este poema é um estrondo!

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  4. Ro,
    Posso dizer-te um segredo? ;-)
    Foi depois de ler este longo poema do Daniel Filipe (um livro que comprei em 1970), que nunca mais parei de ler poesia. Escondido nas prateleiras da Livraria 111, no Campo Grande, encontrei-o e é minha companhia desde essa altura.
    Talvez um dos mais lindos poemas de amor e de revolta.
    Beijinho

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