"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez,
se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas,
em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"
se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas,
em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"
Esta é a pergunta a que teremos de dar resposta no próximo referendo sobre o aborto, se o projecto de resolução proposto pelo PS, que será hoje debatido e votado em plenário na AR, for aprovado. À partida, o projecto terá os votos do PS, PSD e BE, o CDS-PP vai abster-se e o PCP e Verdes, que sempre defenderam a mudança da lei sem recurso a referendo, vão votar contra.
Foi em 1998 que se realizou a primeira consulta, em Portugal. Todos parecem convencidos de que, passados 8 anos, vamos assistir a uma mudança de atitude e de opinião, de forma que, no dia do referendo, a participação dos portugueses será mais significativa e o SIM sairá vencedor. É o que espero. Mas não me apercebi de nenhuma alteração de forma ou conteúdo na argumentação dos defensores do SIM ou do NÃO. De resto, votarei SIM, na mais perfeita ignorância do sistema que será implantado. Votarei pela despenalização, aprovarei o período limite das dez semanas___ e terei de me contentar com a esperança de que o passo seja grande, imenso, apesar de desconhecer quaisquer outras regras, condições e limites.
São várias as questões que coloco. A primeira, mais ontológica que política, reporta ao primeiro referendo. António Guterres (por quem eu nutro uma enorme simpatia), assumido católico e socialista, deixou que a sua orientação religiosa interferisse nos destinos da Nação e marcou um referendo. Não compreendeu que o apelo às consciências individuais (uma retórica recorrente) era anulado pelo próprio acto referendário. Como resultado, uma maioria (que acabou por ser muito relativa) acabou por decidir, anulando um direito a milhares de consciências individuais.
A posição do PCP e Verdes no plenário de hoje pode ser pouco pragmática, mas é a mais correcta.
Receio que, no período de campanha, sejam incontáveis as vezes em que "a consciência individual" será evocada de forma perversa em discursos institucionais, por representantes de organizações políticas ou pela Igreja - que, já sabemos, "dará orientação de voto". A discussão pública desta matéria nunca me tranquilizou sobre o estado civilizacional deste país; mais do que informar, deforma.
Outro aspecto que me desconcerta é próprio conceito que se debate, a despenalização do aborto. Como se pode despenalizar sem legalizar? Por que não podemos referendar a legalização do aborto? Mais estranho ainda, o que é a liberalização do aborto?
A utilização deste conceito é a prova consumada da falta de coragem política dos governantes e responsáveis políticos deste país. Não ousam chamar os bois pelo nome com medo de perder eleitorado.
Eu não pretendo apenas que as mulheres deste país deixem de cometer um acto ilegal ao optar por, em determinado momento, fazer uma interrupção voluntária de gravidez. Parece-me mesmo óbvio que todos desejamos muito mais do que isso. Queremos um quadro legal que sustente a prática da IVG com segurança e responsabilidade. A garantia de estabelecimentos que prestem bons cuidados de saúde é importante, mas o clean cirúrgico não é tudo. É preciso conhecer princípios e limites, para além da duração máxima de dez semanas de gravidez.
Quantas IVG poderá uma mulher requerer? (questão fundamental porque esta prática não pode ser encarada como um novo método anticonceptivo) (e como será exercido esse controle?)
Como/quem decide quando se trata de uma gravidez não desejada de uma menor de idade?
Haverá um período de tempo (número de dias) definido para confirmação da decisão? Existirá uma "comissão de apoio" ou o pedido de IVG será aceite sem qualquer abordagem psicológica ou social aos diferentes casos?
Nunca ouvi uma discussão pública no país sobre estas matérias, na generalidade ou na especialidade. Os debates que antecederam o referendo de 1998 centraram-se ora no valor da vida do embrião, ora no elevado número (estimado) de abortos e de redes clandestinas, temas oportunos, não fosse a simplificação, redução e repetição dos argumentos. Dos defensores do NÃO podemos sempre esperar que revisitem os lugares comuns do "aborto, homicídio agravado" ou "defendemos aqueles que não se podem defender", enquanto que, com os defensores do SIM, já nem nos indignamos quando repiscam velhos slogans (que já foram feministas), como o tonto "a barriga é minha".
Não me parece que o debate de (novas) ideias, a partir, por exemplo, duma reflexão sobre a filosofia e procedimentos já aplicados noutros países, vá acontecer por agora. Mas teria muito prazer nisso.
Foi em 1998 que se realizou a primeira consulta, em Portugal. Todos parecem convencidos de que, passados 8 anos, vamos assistir a uma mudança de atitude e de opinião, de forma que, no dia do referendo, a participação dos portugueses será mais significativa e o SIM sairá vencedor. É o que espero. Mas não me apercebi de nenhuma alteração de forma ou conteúdo na argumentação dos defensores do SIM ou do NÃO. De resto, votarei SIM, na mais perfeita ignorância do sistema que será implantado. Votarei pela despenalização, aprovarei o período limite das dez semanas___ e terei de me contentar com a esperança de que o passo seja grande, imenso, apesar de desconhecer quaisquer outras regras, condições e limites.
São várias as questões que coloco. A primeira, mais ontológica que política, reporta ao primeiro referendo. António Guterres (por quem eu nutro uma enorme simpatia), assumido católico e socialista, deixou que a sua orientação religiosa interferisse nos destinos da Nação e marcou um referendo. Não compreendeu que o apelo às consciências individuais (uma retórica recorrente) era anulado pelo próprio acto referendário. Como resultado, uma maioria (que acabou por ser muito relativa) acabou por decidir, anulando um direito a milhares de consciências individuais.
A posição do PCP e Verdes no plenário de hoje pode ser pouco pragmática, mas é a mais correcta.
Receio que, no período de campanha, sejam incontáveis as vezes em que "a consciência individual" será evocada de forma perversa em discursos institucionais, por representantes de organizações políticas ou pela Igreja - que, já sabemos, "dará orientação de voto". A discussão pública desta matéria nunca me tranquilizou sobre o estado civilizacional deste país; mais do que informar, deforma.
Outro aspecto que me desconcerta é próprio conceito que se debate, a despenalização do aborto. Como se pode despenalizar sem legalizar? Por que não podemos referendar a legalização do aborto? Mais estranho ainda, o que é a liberalização do aborto?
A utilização deste conceito é a prova consumada da falta de coragem política dos governantes e responsáveis políticos deste país. Não ousam chamar os bois pelo nome com medo de perder eleitorado.
Eu não pretendo apenas que as mulheres deste país deixem de cometer um acto ilegal ao optar por, em determinado momento, fazer uma interrupção voluntária de gravidez. Parece-me mesmo óbvio que todos desejamos muito mais do que isso. Queremos um quadro legal que sustente a prática da IVG com segurança e responsabilidade. A garantia de estabelecimentos que prestem bons cuidados de saúde é importante, mas o clean cirúrgico não é tudo. É preciso conhecer princípios e limites, para além da duração máxima de dez semanas de gravidez.
Quantas IVG poderá uma mulher requerer? (questão fundamental porque esta prática não pode ser encarada como um novo método anticonceptivo) (e como será exercido esse controle?)
Como/quem decide quando se trata de uma gravidez não desejada de uma menor de idade?
Haverá um período de tempo (número de dias) definido para confirmação da decisão? Existirá uma "comissão de apoio" ou o pedido de IVG será aceite sem qualquer abordagem psicológica ou social aos diferentes casos?
Nunca ouvi uma discussão pública no país sobre estas matérias, na generalidade ou na especialidade. Os debates que antecederam o referendo de 1998 centraram-se ora no valor da vida do embrião, ora no elevado número (estimado) de abortos e de redes clandestinas, temas oportunos, não fosse a simplificação, redução e repetição dos argumentos. Dos defensores do NÃO podemos sempre esperar que revisitem os lugares comuns do "aborto, homicídio agravado" ou "defendemos aqueles que não se podem defender", enquanto que, com os defensores do SIM, já nem nos indignamos quando repiscam velhos slogans (que já foram feministas), como o tonto "a barriga é minha".
Não me parece que o debate de (novas) ideias, a partir, por exemplo, duma reflexão sobre a filosofia e procedimentos já aplicados noutros países, vá acontecer por agora. Mas teria muito prazer nisso.
(continua)
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